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quinta-feira, 31 de julho de 2014

A Noiva-Viúva


WTC - Torres Gémeas no Dia 11 de Setembro de 2001           Nova Iorque (Big Apple)  EUA

Que punição foi esta tão pungente, tão dilacerante e tão devastadora que me arrancou a alma do peito, à semelhança de Dom Pedro por Dona Inês de Castro - minha mui chorada rainha consorte e, sem sorte alguma, que pereceu degolada ante seus algozes? Ou, numa outra dor, da justa imputação e condenação póstuma, por aqueles tão negros corações - os outros, de Gonçalves e Coelho - que o meu Rei arrancou com suas próprias mãos (afere-se sem haver disso prova) no que lhes imputou perante toda a corte e, em praça pública, decepando-os da vida acometida? Haverá maior dor...? Passados tantos séculos e tamanhas provações, e ter eu hoje em inversa e corpórea situação, essa mesma reiteração instada em mim como peçonha maldita de sempre ver quem mais amo, sob os desígnios da morte? Que Karma será este, Santo Deus...? Que terei feito de tão negritude missão em alguma vida, para Deus ou os homens me condenarem assim? Não terei já sofrido demais??? Não basta já, recordar-me dessas vidas, dessas lutas, dessas agruras? Como resistir a este Inferno de Dante, inferno real perante meus olhos...? E...perante o mundo...?

11 de Setembro de 2001  -  Lisboa  /  Nova Iorque
O Noivado
Eu estava linda! Exuberante como flor acabada de colher em todo o meu regaço de menina-mulher que era. Tão jovem...tão bela e...tão distante do que me iria acontecer daí a dias, a semanas...a momentos que por mais que queira esquecer, não consigo! Jamais conseguirei esquecer! E...perdoar! Não posso!
Os meus pais parecem libelinhas saltitantes em meu redor ou como simples abelhas em torno do casulo, em torno da sua rainha. Rainha ainda não sou...apenas uma princesa destes novos tempos. Tenho tudo para ser feliz....(pensava eu). Tenho o mundo à minha beira e, à minha espera em leito nupcial daqui a uns dias, a uns instantes, suponho. Sou feliz e penso que o mundo sabe disso.
Tenho a boda toda preparada. Os enfeites são lindos: são todos em amarelo e branco como as cores do Vaticano, só para agradar à minha mãe que é muito religiosa e não perde uma missa cantada, desde a Capelinha das Aparições de Fátima às emitidas pelo Papa na grande praça de São Pedro, em Roma.
O pai, esse, está tão aflito de ir «perder» a sua menina que mal respira e, por muito que considere e respeite o meu futuro marido, ainda assim se sente usurpado de poderes e de distinções que outrora eu lhe fazia lambuzando todo em colo e carinhos, aquando me levava ao Circo, ao Zoológico da cidade ou simplesmente à Escola Primária! Licenciei-me fervorosamente com uma média de curso mediana, é certo, mas confiante no futuro, pois nem todos temos de ser grandes cérebros - macrocéfalos, sinto! - para que entremos em Medicina com a pontuação máxima. Optei por Enfermagem - sempre estou mais perto de quem de mim precisa, necessitando de cuidados básicos ou sequer um carinho, um sorriso. E gosto disso!
Há dois meses atrás, o meu grande amor - que conheci já na Faculdade - presenteou-me com um belo e romântico jantar num dos mais caros e dispendiosos restaurantes da cidade, em Lisboa, pedindo-me em casamento. Aceitei! Meu Deus...como recusar??? Ele, o meu amor, é lindo! Lindo demais, bom demais...é tudo demais! E eu...bem, eu também não sou nada de deitar fora (dizem-me) mas dá-me que pensar se, sendo ele tão charmoso, tão inteligente e com aquele sorriso endemoninhado de malandrice e submissão, e eu não sei o que farei se mo roubarem de mim, se mo sacarem da minha alma, pois que já não vivo sem ele! Acabou Engenharia há dois anos e está agora numa promissora carreira entre reino Unido - Nova Zelândia - Arábia Saudita - Angola - e por muitos mais países que eu nem suspeito existirem. Por várias vezes me deixou apeada no terminal do aeroporto em choros e lamentos, por de si me ver apartada. Por isso este noivado é tão importante para mim...tão importante! Amo-o tanto que por vezes sinto que enlouqueço sem ele, mas refrego-o para mim, não vá ele pensar que eu sou uma dessas sanguessugas que não têm vida própria e lhes sugam o vital das suas. Comigo não. Mas sofro, ah...como sofro!
E pronto, é isto! Vou casar a 19 de Setembro deste belo ano de 2001. E nada me fará voltar atrás, na irreversibilidade completamente assente do que sinto e, do que quero para a minha vida! E ninguém mo pode tirar. Ele, é o meu príncipe e eu...sou a sua princesa, a sua rainha...a sua maior agonia de quando não está comigo, a sua «Shangri-la» destes novos tempos, disse-mo mordiscando-me uma das orelhas, aquando me enfiou o anel de noivado e...o seu corpo em mim...numa promessa eterna de acoplagem cósmica e universal de corpos e alma juntas, que nada nem ninguém jamais separará! Nada! Ninguém!

O Dia do Juízo Final
Para mim, aquele dia...aquelas horas...aquele momento consagrado ao mais terrível demónio de todos os tempos, vivê-lo-ei com a certeza de não mais ter um dia na vida assim! Foi crucial e determinante em toda a linha, na voltagem que se tem por hábito dizer de, cento e oitenta graus em destino e não-retorno.
Ver aquelas Torres-Gémeas a arder, era como se um mundo fictício, inexpugnável e tão irreal como a minha razão distorcida - ali - ao observar o poder da maldade pura, o poder maléfico de todas as coisas sobre algo e, alguém, que jamais se poderia defender, enclausurado naqueles múltiplos pisos de fumo, cinza, fogo e morte. Era como se a minha alma estivesse a ser assada em lume brando, sob uma campânula fervente em que via uma outra, distendida e morta sem que algo se pudesse fazer na inevitabilidade das coisas.
Tinha acabado de almoçar em plena Avenida que circunda o Corte Inglês em Lisboa. O movimento era caótico como de costume. Mas algo se passava de estranho...de sobrenatural, considerei. Havia gente apinhada sobre os restaurantes locais - que sempre tinham televisões acesas ou abertas em plena actividade laboral para que os clientes assim pudessem estar actualizados com as notícias e, informações sobre o globo. Eu não era excepção. Mas...naquela tarde em particular, achei estranho que tanta gente se empurrasse para ver o que se passava entre murmúrios, lamentos, incredulidade e mesmo rezas - ouvidas a baixa voz.
Tentei furar por entre alguns curiosos, ante a perspectiva de ver algo inédito ou mesmo de muito interessante, perante tamanha assistência de um silêncio sepulcral, recortado por êxtases alucinantes (de quem era mais sensível) do triste espectáculo no ecrã que nos detinha a fala, o andar e...o pensamento, acreditei.
E o que vi, matou-me por dentro. Sei que emiti um grito. E mais não sei. Apaguei! Ou seja, devo ter desmaiado. De volta de mim, já se achavam vários rostos que eu não conhecia e que me pareciam tão esquisitos quanto aterradores, sobre o que em mim revertiam de idiota de hiper-sensibilidade ou sequer uma histérica escriturária que se dava de fanicos, só por ter visto uns edifícios em chamas.
Nada mais errado. Ou...mais correcto com a minha dor. O meu noivo tinha ido na véspera para Nova Iorque em reunião marcada com um empresário de alto gabarito, que se comprometia a erguer novos edifícios no Dubai, sob a égide e coordenação do meu amado noivo e outros dois colegas de profissão que o haviam igualmente acompanhado nessa missão profissional. O WTC era o visado, por este referido empresário ter aí os seus escritórios e sede certificada. Eu tinha acabado de falar com ele ao telefone - lá eram oito e quarenta e cinco minutos da manhã (na hora em que o primeiro avião embateu na primeira Torre, penso...não sei nem quero saber a hora exacta!) e, estando ele no Hotel a tomar o pequeno almoço antes de ir com os outros seus colegas, eu ter ouvido a sua voz, o seu riso, a sua alegria inexorável sobre o que eu determinava ser o meu Rei, a minha outra metade da alma havida! Foi a última vez que o ouvi...pelo «meio-dia» (12 horas) em Lisboa e, seis da manhã lá, em Nova Iorque do que supus ele ter madrugado e nada ter dormido em insónia permanente por tão eminente reunião e, de tão grande importância para a firma onde trabalhava.
Acabou aí. Acabou tudo! Os lençóis no chão, os nossos corpos nus, envoltos um no outro, os cheiros, os desejos, as ambições, os futuros a construir, os filhos por vir, as carreiras por constituir, a vida no fundo...por consolidar, a dois! E agora...o vazio, a dor, a morte! A cruel ceifeira doida e louca que me levara o homem! Aquela malvada traiçoeira que mo tirou de mim...aquela coisa feia, esquelética, horrenda...que me arrancou o noivo de mim, e eu...agora, sem nada mais para haver, sem nada mais para que algo me socorresse nessa tão crepitante dor dos infernos, só lamentava não ter ido consigo para que tudo tivesse acabado num só momento e, no Céu, no Paraíso ou onde quer que fosse...eu estar do seu lado...como sentira um dia, a Lady Di ao lado seu Dodi que não deixaram amar, que não deixaram frutificar...e assim me vi, morta e petrificada em meses e meses de recuperação por entre anti-depressivos, anti-psicóticos e mais algumas coisas começadas por psi que não eram coisa boa! Mas não morri!

O Luto
Pode-se não acreditar mas, o lugar onde me sentia melhor e menos frágil, era no Mosteiro de Alcobaça. Não sabia dizer porquê. Até...o descobrir! A maior revelação de toda a minha vida fora a de que sempre me sentira deslocada, abocanhada por uma actualidade que não era mais minha. Nem antes nem depois. Eu sentia-me bem dentro daqueles húmidos claustros onde as paredes pareciam guardar segredos, lamentos, gritos, nascimentos e...sepultamentos, por certo! As esculturas em pedra sobre os túmulos virados um ao outro de um meu Rei antepassado, meu senhor e rei Dom Pedro I e de, minha sacrossanta (quase...pelo menos para mim e, à semelhança da Santa Isabel, uma outra rainha, esposa de Dom Dinis e avô deste meu Dom Pedro aqui sepultado em restos mortais). Ficava horas a olhá-los em suave e silenciosa permanência que, as guardas e funcionárias do Mosteiro me admitiam pelos muitos arrogos de meus pais - que haviam inclusive empunhado um certificado clínico do meu psiquiatra, registando a minha deformidade mental, invasiva em mim mas evasiva do mundo que me acolhia agora! E lá iam mantendo a sua postura distante de mim que, por conforto e amabilidade de uma das funcionárias, me dera um pequeno banco para que me sentasse, visto estar horas perdidas, horas impensáveis a olhar, só olhar, para aqueles túmulos de pedra de ambos os meus reis da Idade Média, agora e a li prostrados em gelo e, em imperiosidade fóssil...como eu!
Nada se modificava. Os pais até alugaram uma pequena casa nos arredores da vila de Alcobaça para que eu recuperasse das dores sofridas de me ter visto espoliada e desamparada de meu querido noivo, enterrado (pois nunca se veio a identificar o seu corpo, ou o que restaria deste em análises forenses de ADN) e, não ter onde chorá-lo, não ter onde amparar essa minha dor, achar que ali - a cento e muitos quilómetros de distância de Lisboa - o sentir era diferente, era próximo, o sentir que algo me levava a estar junto de si.
O espectável era que eu fosse a morta Dona Inês...mas não! Via-me como um garboso, bonito e altivo rei Dom Pedro, de mão dada com a sua bela Inês - o meu amado noivo! Não compreendi de início. Depois sim...senti-lhe a raiva, senti-lhe a dor, senti-lhe o despudor e até a loucura presente, não só em ter arrancado do peito e das costas os corações pulsativos de vida de Gonçalves e Coelho - que a mando de seu pai, o rei vigente Dom Afonso IV tinham ido executar a pobre coitada da Dona Inês de Castro - só por esta ter contraído matrimónio com Dom Pedro à revelia deste em secretismo absoluto, sendo esta de linhagem dos Castros e, de toda uma Castela, Leão e Aragão malditas, aos olhos de seu pai que sempre o contrariara desse desmando. E tudo eu via...e tudo eu sentia. E então compreendi!
Curei-me. Voltei para a minha cidade e mudei radicalmente. Não mais chorei nem tomei a medicação astronómica com capacidade para matar de vez com uma manada inteira de gado ou então...colocá-los a dormir em sonolência permanente, que era o que me tinha sucedido até aí. Voltei a trabalhar. Voltei para a vida! Voltei para o mundo dos vivos!
Às vezes, os serviços noticiosos ainda dão as imagens das Torres-Gémeas em Nova Iorque - em particular a cada ano comemorativo sobre esse fatídico dia em que pereceram milhares de pessoas - e todo o mundo assistiu em pesar e incoerência geral do que se observava impotentemente. Nada voltaria a ser como dantes...nada! Eu não voltei! Mudei, sou outra pessoa. Não quero lembrar. De nada. Dos tempos de namoro...das flores do campo metidas por entre as minhas calças e, as suas mãos - as mãos suaves dele - no meu corpo, no meu baixo-ventre, na minha alma! Tantas vezes que, após termos feito amor, lhe dizia depois: "Vais ser sempre meu, sempre!" E ele me respondia com o olhar lânguido e temente de quem não receia nada: " Até à eternidade!" - E assim é! Será mesmo até à eternidade, pois que nesta vida mais ninguém fará o amor como ele fazia comigo, beijando-me os seios, o ventre, beijando tudo como se o mundo estivesse em rotação decrescente ou sem esta, parando quase de imediato. Era premente o nosso amor! Era obrigatório em exultar gemidos, gritos, forças orgásticas que nenhum de nós detinha em si e depois...suados e dormentes, sob um clímax dúbio entre o que já se atingira e o que se desejava ainda mais, que morríamos no corpo um do outro - em sabor e crescente alucinação de corpos e mentes tão lúcidas, tão amantes...tão uma da outra que se não dissociava quem era quem. E foi assim...até a eternidade que nos despedimos naquela ante-véspera maldita em que o meu amor-noivo rumou até à «grande maçã», como na brincadeira lhe chamávamos em epíteto só nosso, num português arrevesado entre um fado vadio e, uma corrente anárquica e de certa forma yuppie, do que o futuro o esperava em novos e frutuosos projectos profissionais: de ambos! E tudo morreu com ele! E tudo desapareceu e eu...tão só fiquei, eu, a Noiva-Viúva que o fui de facto (estávamos casados oficialmente e por via legal, havia um mês...esperando pela cerimónia religiosa para tal determinar depois) e, sem nada o prever, ser cortada destas ambições, destes projectos, destes futuros a dois! E só...fiquei. E...só estou, esperando o dia em que me juntar a si, ao meu belo noivo-amante que amo incondicionalmente, até que esta vida me leve e Deus me troque de corpo. Não lamentem. Sou feliz...à minha maneira. Amo tudo e todos mas não me envolvo, a não ser... a não ser que... Deus me pregue uma partida terrestre em conluio com uma conspiração universal e...me devolva a alegria e..quem sabe...um novo amor. Não procuro mas...se ele vier, eu aceito. Deus está sempre presente e eu...bem eu, aceitarei tudo o que Ele me quiser dar, apenas porque sou apenas...uma só vida com muitas outras por viver. Só isso! E Deus sabe disso muito bem! Até à eternidade!!!

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