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terça-feira, 8 de março de 2016

Eu, Mulher


Viver o mundo por detrás de um pano quase opaco...

Kabul-jalalabad Afeganistão
A cidade está desperta. O Sol soou como que a nos dizer que está aqui presente; sempre! Tal como as pedras do meu país, inamovíveis mas transgressoras de vis actos sobre si. Choram: como eu.
Já vi muita coisa, muito mundo atrás deste pano, Atrás desta horrenda burka.
Não morri; ainda. Mas esmoreço a cada dia que passa, a cada dia que não vejo a luz de Alá sobre mim e sobre o que tanto esperei, o que tanto desejei e amei na vida, na minha curta vida ainda. Mas que me parece tão longa, eterna e dura, muito dura, e tão cruel que mais valia os cães terem-me decepado a cabeça, terem-me arrastado por cavalos alados ou, em praça pública, terem-me vazado todas as esperanças e todas as agonias vividas. Mas Alá não permitiu e ainda me encontro viva, apesar de saber que talvez essa sorte não me seja muito afecta nem longa, porquanto aqui estiver escondida e remetida ao mais pútrido silêncio dos covardes. Estou só, mas permaneço viva.

Tudo o que amava, tudo o que a vida me encimou nestes parcos dezoito anos de idade - a idade adulta no Ocidente (que ironia...) - é a que agora possuo, mas ainda mais encruzilhada e obscura, se realizar em mim o que esta já me trouxe, já me concedeu de tantas agruras, tantas dores e moléstias, piores que as da sarna dos jumentos. E como eu lamento por isso, e como eu peno por tão fraca ter sido, por tão admoestada ter desvalido essa minha dor e, a de minha amada mãe, que deu a vida por mim.
Oh, por Alá, como tal foi possível naquele que me tendo dado igualmente a vida, agora ma quer tirar, apregoando aos sete ventos e aos sete céus que quer a minha cabeça, que quer o meu sangue, que quer a minha alma, se tal lhe fosse possível...

Meu pai, é meu carrasco. É um verdugo, inculto e magnânimo - Pashtun - de vozeirão prepotente e comportamentos insanos que da honra máxima de ouro (zar), terra (zamin) e mulheres (zan) tudo ceifa, conquista, toma, faz pertença e abusa. Não exactamente por esta ordem. Matou-me a minha mãe que tanto me auxiliou na fuga e na comprazia de com o meu amado partir para longe; mas quem partiu foi ele, meu querido e amado Sayd que jorrou seu sangue, que jorrou sua vida por mim; ele, e quatro dos seus irmãos que seriam meus aliados e meus cunhados, mas nunca o chegaram a ser - Alá não deixou.

Algures na fronteira entre o Afeganistão e o Uzbequistão...
Sou uma refugiada, sou uma pedra no planalto ou nestas enrugadas montanhas martirizadas, também elas, sob os destinos de uma geografia nem sempre cordata nem sempre feliz ou concisa sobre si; sou uma pashtun fugida à lei dos homens da minha terra que, de Khost, Kandahar, Herat ou Kabul (outrora a minha cidade) se vêem debater com os mesmos problemas, com as mesmas reiterações - ou tiranos jugos familiares - excruciados de direitos, abolidos de afeição ou maiores relatos que não sejam os dos senhores que em muito ouro, muitas terras e muitas mulheres, nos vendem a nós, mulheres afegãs (filhas, sobrinhas e até mães ou avós) se lhes aprazer, se lhes der préstimos, proventos ou maiores colheitas de bolsos cheios em que a honra se mede por todos estes alqueires, por todas estas missivas, inconcebíveis no Ocidente. Mas eu estou longe, do outro lado; do lado do Oriente e de uma Ásia que se não comove com os olhos de quem não vê, com os olhos de quem não sente, tapados, invisíveis, inexistentes aos outros - aos olhos do mundo...

Noor, é o meu nome. Que tive de mudar e já nem sei decorar. Nem quero. Prefiro não ter nome, não ter nada. Sou uma sobrevivente que, não possuindo os tão carismáticos ou icónicos olhos verdes de Sharbat Gula, também não sou nada de desprezar. Pior ainda seria, o não ter nariz ou orelhas (como há pouco se desfez o mito ocidental de algo estar a mudar no meu país) por mão punidora e castrante - criminosa e assassina - de um esposo e marido, igual carrasco, que assim lavou a sua honra por sua pertença lhe ter fugido dos maus-tratos, da pancada do corpo e da alma e tudo o mais. E que esta história, triste história de muitas mulheres no meu país, ao mundo foi relatada em terror e alarme, ao reconhecerem na infeliz Bibi Aisha, o terrorismo conjugal em toda a sua máxima linha de desencanto e horror - que jamais se cumpriria por outras terras que não as deste inclemente Afeganistão.

Estou só e isso mete-me medo.  Pelas sombras, pelos sons que ouço e, pelos fantasmas que comigo carrego, pelas almas que se devassaram de mim e sobre mim; de minha pobre mãe, de meus pobres quatro «irmãos» não de sangue mas de uma fidelidade a toda a prova (à prova de bala que não a da espada...) por tão mártires terem sido, por tão corajosos terem revestido os seus corpos, as suas vidas, por uma causa que não era a sua, mas minha. Quanto lhes devo, por Alá! Será que o pagarei alguma vez... até pelo meu próprio sangue...? Não sei, muito honestamente não sei e temo por isso. Não serei a mais fiel criatura sob Alá, mas ser-lhe-ei eternamente grata se me der o conforto e o bom senso de conseguir ter calma - e paciência - para me manter escondida, para me manter «morta» aos olhares dos que me querem ceifar a vida ou, fazer refém de uma angústia dolorosa ainda pior do que a própria morte. Meu pai. Meu tudo e meu nada.
Aquele que me deu vida há dezoito anos por ventre materno e dores (muitas!) de minha mãe, é hoje o meu perseguidor, tal como predador do deserto, implacável executor de presas e convénios, preceitos e preconceitos antigos, muito antigos,  exortando garras afiadas e alma encrespada e negra, fechada aos sentidos, fechada a tudo - ou a qualquer outro sentimento que não seja o da pertinente vingança, a sua vingança, por eu lhe ter desobedecido, por eu lhe ter fugido, por eu lhe ter coarctado o direito paterno e total sobre mim. Por ter amado outro que não ele, de outra etnia, de outro nível - de outro mundo, quase se supõe; por ter, enfim, feito-me seguir nuns outros princípios e leis que não as suas da arrogância, do despotismo e da severidade máxima sobre mim, sobre minhas irmãs, sobre minha mãe que matou de uma paulada só. E que ainda hoje me aparece em sonhos dando forças, dando alentos para que não desista, para que persista nesta ânsia de daqui para fora me ver, do espartilho cilicioso desta fronteira afegã onde me encontro. Mas já falta pouco, muito pouco para chegar ao Uzbequistão, que fica a norte e, sensivelmente a 130 quilómetros do meu destino dourado que se chama Liberdade! Ah, por Alá... como eu quero esse sonho, essa luz, esse caminho e esse destino não pedregoso que me leve a ver o Sol que não seja através deste pano grosso, deste incólume presídio de todos os meus pedidos, de todos os meus suplícios por que já passei.

O meu valor é real: 100.000 dólares! 100.000 dólares de recompensa pela minha cabeça, pelo meu sangue e, pela sua honra lavada, tingida a vermelho, tingida em dor, desespero e sofrimento que lhe darão o meu cadáver, segundo se pronunciou meu pai. E sentir que, um dia, ainda o amei... ou pensei amar... aquando me lera os seus antigos e velhos «Landais» (pequenos poemas de dois versos recitados pelos pashtuns, uns aos outros, aquando festejos de casamentos ou à volta dos poços das aldeias) e que agora, melindre o meu, lhe sinto como o mais terrífico, o mais cruel ou o mais aterrorizador do mundo, como aqueles de um passado não muito distante de Mujahedins sobre Talibãs e estes sobre outros, sobre todos nós, em percurso medieval (segundo rezam as histórias que me chegam do Ocidente), em que o sangue é o asfalto que desenha os caminhos, que ensopa os campos inférteis e malignos de toda esta minha condição, só por ser mulher. Mulher... no Afeganistão. Que triste sorte a minha! Que triste sorte aqui ter nascido. Mas é assim e nada mais posso fazer que fugir, renegada e mal-amada ou não amada de todo, sem nada nem ninguém que me possa valer.

Privo esta gruta escura com os morcegos. E chego a gostar deles. Não me sugam o sangue nem a alma nem a pouca vida que já exulto de mim, mas vigiam-me; sinto isso. Talvez estejam à espera que eu sucumba às poucas forças que já tenho em mim. Ah, por Alá, se eu pudesse ter a força, a coragem e a dignidade suprema da Sahera Sharif, a nossa primeira parlamentar afegã, de sua condição e género, que jamais este sítio de leis e guerra tal pensou. Mas eu não sou ela, mesmo que partilhemos da mesma etnia, da mesma crença ou esperança de ver chegadas as liberdades, as igualdades ou as fraternidades a este meu sanguinário e antigo país que, estranhamente, eu continuo a amar como se raiz de mim ele fosse, em caule e corolas abertas, como belas flores, todas expostas a um Sol que deve ser para todos. Mas para todos não é. Continuo na penumbra, na escuridão e na dormência destes incipientes dias que me têm sequestrada também de uma outra alegria - ou de uma outra condição que não seja o ver-me enrubescer por outra alegoria. Ah, por Alá, como seria bom que esse dia não tardasse, que esse dia me não faltasse, como faltou ao meu querido Sayd e à minha querida mãe que Alá tem em seus braços; agora. Por minha mãe, por Sayd, por seus falecidos irmãos, que tudo eu tenho de vencer e não me deixar morrer às mãos de quem me viu nascer. Não permitirei dar-lhe esse triunfo, essa vã glória dos fracassados, dos frustrados e, acima de tudo, dos inimigos de Alá!

Quantas vezes pensei em envenenar-me... quantas vezes pensei em flagelar-me ou imolar-me em auto-defesa (ou confronto) contra o que se não pode já lutar, combater ou enfrentar. Mas não consegui. Eu, que ainda sonhava poder ingressar nas fileiras académicas da Universidade de Khost... que parva eu fui... como se meu pai, meu carrasco, tal me houvesse permitido ou sequer sonhado...
Predestinada a casar com um cunhado de meu pai (mais velho do que eu, 30 anos!) e pior, com quatro mulheres já, e qual a mais maléfica, a mais ardilosa, a mais pérfida entre si, ao que me disseram delas. E eu, qual galinha não desempoeirada, franganita de capoeira que não sabe fugir ou voar, no meio delas, no meio dessa selva de espinhos e fel, muito fel, sem ninguém que me valesse. Triste sorte a minha ter-me apaixonado - ou salvação maior (quem o saberá...?) - de me ter enredado em olhares e volúptias com meu amado e belo Sayd que agora dorme no colo e no seio de Alá! Assim como seus irmãos e... minha adorada e querida mãe!

Jamais o esquecerei. Tanta morte. Tanto sacrifício e tanto derramado, despojado sangue por nada. Ou por tudo, em auspicioso negrume de almas ainda mais fechadas do que as de demónios na Terra.
Quem me dará agora «melmastia» (hospitalidade) ou «nanawati» (abrigo ou asilo)? Ou apenas... «badal» (justiça ou vingança) - só «badal» - que vingança já me chega a de meu pai que me quer ver morta. Se morta já quase estou, vivendo de migalhas de sementes dos pássaros ou de algum fruto que das poucas sebes encontro, e da água suja que depois fervo para não ter febres, para não adoecer. Mas resistirei, chegarei ao meu destino; sei que chegarei. Estou à espera de uma boa alma que me vai ajudar (depois de lhe ter dado o único bem havido que comigo trouxe naquele desvio de vida de outros trilhos, outros ensejos percorridos). Uma Lua de Cobre que minha avó materna me dera em tempos idos, aquando ainda criança. Pouco valor deve ter, mas ainda assim esta mulher de mim levou, fazendo-se pagar em jumento e provisão na direcção de leste-oeste (ao norte do Afeganistão) até terras salvadoras do Uzbequistão. Espero por ela mas estou impaciente; a minha vida está por um fio... mas eu continuo à espera, pois sei que nada mais me resta do que essa elevação de alma; e por Alá que é Grande, que é o Maior que Tudo, se eu não vou arcar com outro destino, outra vida - e só não outra alma, por que esta me faz falta para tal empenhar. E vou continuar. E vou conhecer o mar que nunca vi nem senti; e outras terras, outros mundos. E se Alá me permitir, outros amores.
E vou viver: Por Sayd e por minha mãe. Mas acima de tudo (e Alá me perdoe...) por mim, que tanto já esperei por este dia, por esta luz, por esta designação de ser, tão-só e apenas, só mais uma Mulher que quer sobreviver. Uma Mulher... fora do Afeganistão!Eu, Mulher... assim me defino. Hoje e sempre, onde me fizer pertencer e a minha alma conceber ser feliz. Serei sempre, fielmente sempre...Mulher!

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