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sexta-feira, 25 de março de 2016

A Minha Páscoa!


Aeroporto Internacional de Bruxelas-Zaventem

22 de Março de 2016: hora local: 7 horas e 50 minutos (Aeroporto-Zaventem)
«Estou à tua espera. Aqui, no aeroporto (nas partidas, como combinado) Não demores. Amo-te muito».

Eu e os meus pensamentos... (onde raios te meteste, homem...?)
Será que vens...? Será que à última da hora te dá uma valente dor de barriga como desculpa para não vires, para ficares com ela, com a tua mulher...? Nem penses! Percorro meio mundo e dou cabo de ti! Estou a avisar-te meu grande cretino, ouviste...? É claro que não me podes ouvir ou nem virias. Ser a outra, é ser pior do que peste, malária ou febre amarela em África, eu sei. Mas que fazer...? Ouvir os conselhos árduos mas fartos em exaustão - e desperdício - de meus pais sobre mim e, sobre o que me suspeitam eu andar a fazer com um homem casado e sem esperança de tal mudar...?! Ou, ouvir-me a mim, ao sentir que nada neste mundo me fará parar, me fará voltar atrás, só para te sentir o cheiro da pele, o doce e intenso cheiro do teu perfume («Tsar») de homem macho que me és, e até o teu sorriso matreiro de quando me queres levar para a cama e eu finjo dizer que não... ?! Que fazer perante isso...? Amo-te mais do que a mim, e isso é estúpido, eu sei. Tão estúpido como o ter dito aos meus pais que vinha assistir a uma palestra sobre os fósseis encontrados na África do Sul sobre um dos primeiros homens na Terra. Será que acreditaram...? Penso que não. Não são estúpidos; só eu sou, por tanta insegurança me enveredar. Mas ele vem, sei que vem. Raios o partam, por que razão ainda não chegou...? Está atrasado, o idiota. Meu Deus, e e se ele não vem...? Parto-lhe o focinho! Arrebento-lhe com a boca toda (será que ele pensa que eu sou dessas que engolem tudo com pão...?) Não. Eu não! Ou parto mesmo para a agressão mais lusitana que conheço, e dou-lhe uma cabeçada à Mouraria que ele vai ver. Quem ele pensa que é, ah...? Deus, diz-me que ele vem... diz-me...»

A Realidade... 3 dias depois...
O Mundo é composto de bestas; bestas humanas: Ente elas estás tu. Ao lado dos que se fizeram explodir. Ao lado dos que sem alma se desencarnaram nesta vida. E tu, meu amado, que tudo me eras e serias até que te espelhasses para mim, até que te despisses na totalidade para que eu te visse - finalmente desnudo de tudo - na tua verdadeira essência de coração e sentidos, acabaste por te deixares morrer em mim, não nesta vida, mas nessa outra em que vivendo de fora de mim, eu te olho, te observo agora, vendo-te e sentindo-te como o mais facínora tributário de parte da minha vida. Quase morri e tu, assististe a tudo, sem  me tocares, sem me visitares, sem no fundo, me tocares na alma, dizendo que era tudo verdade e não uma desavergonhada mentira, daquelas que só tu sabes dizer; a mim e ao mundo. Pelo menos, os que morreram do meu lado partiram em paz, e tu, ficaste em guerra - comigo e com o mundo. Ser-se deputado europeu tem benesses, da imunidade diplomática à mais alta instância abonatória de um certo tráfico de influências que todos dizem não o ser, mas será...? Não o sei. Quanto a mim, benefícios zero. Não te concedo imunidade!
Dos lagos suíços, do romance prometido e do dulcífero aroma dos chocolates, apenas a dor de saber que, um dia, talvez te vá encontrar... só para te dizer que não valeu a pena, que não foi bom, e pior, que até foi tempo perdido, como aquelas más horas em que vi corpos estilhaçados, estropiados e jogados borda fora, de uns e de outros, sobre mim e sobre todos; os vivos e os não vivos. Foste embora, talvez porque nem chegaste a vir e eu não me apercebi disso. Só mais tarde o vi - ou disso tive a subreptícia percepção (nestes três precedentes dias) - aqui, neste flamengo hospital belga que agora é do mundo, pelas más notícias e pelas horrendas achegas de um Daesh mais impulsionado e, liderado, que esse Al Qaeda em tempos da Guerra do Golfo.

Do sonho ao pesadelo...
São duas da manhã. Ou lá perto, não sei. Acabaram-se-me as horas; acabaram-se-me as ideias, os tempos, ou as honras de me virem dizer a que horas, a que dia, ou em que ano eu estou. Aqui tudo é movido num tempo que não é tempo e num espaço que não se cumpre, por outros em que se vegeta. Ou por outros ainda em que se só se ouvem gemidos surdos, calados de uma dor aguda, acutilante e, ensurdecedora, se realizarmos o quanto estas dores, estas calamidades, se fazem sobre corpos que se não conhecem, sobre almas que se não separam da sua outra condição de mortos-vivos - ou moribundos - sobre as macas frias, gélidas, de qualquer conforto humano. Até porque, não há tempo para isso. É tudo um enorme grito, como o grito de Munch. Calado, sofrido, agrilhoado de todas as dores e de todas as sortes - desditas e mal-paridas - que todos, aqui, no hospital militar de Bruxelas emparedamos. E sofremos. Que ironia: a capital da Europa, a capital do mundo em sede da NATO e da União Europeia e, onde tudo agora acontece...

Da Portela para Zaventem, e tudo parecia perfeito: do embarque à espera, até ao refúgio final da sempre angustiante demora que tarda em se fazer imperar. Ou, ressuscitar. Da noite que se não dormiu em insónia permanente e não penitente, por tudo o que se envida vir a acontecer, vir a viver, ante todas as expectativas de um romance a dois, envolto em sexo, chocolates e... se Deus permitisse, a promessa maior (na maior de todas as outras!) de um compromisso a longo prazo.

Foi esta a minha mais sublime condição na veleidade assumida de mulher adulta, que vai atrás de um grande sonho, de um grande amor - ou de uma grande e platónica ilusão - e tudo para trás ficaria (pensava eu...), na mais displicente e perdulária consignação humana de para trás se deixar o cão, o gato, o periquito, e até os amigos - ou colegas de trabalho - que quase sempre apetece estrangular mas acariciamos com olhares subtis e até voluptuosos, só porque nos chegou o dia, o primeiro dia de toda uma vida - a nossa vida - em que vamos ser felizes e nada mais importa.
Esperei hordas de dias e noites por este dia; dia e noite em que não dormi ou preguei olho uma só hora que fosse, só para te ter nos meus braços e não nos da tua mulher. Pois. És casado. Coisa breve ou... para ser breve, pois dizes (ou dizias sempre) que era chegada a hora, a hora desse término, dessa separação conjugal e de um possível e não litigioso divórcio, só para me teres, só para me possuíres como tua única e endeusada ninfa destes novos tempos; tempos modernos. Tempos estes, que se não compadecem com rugas, filhos, e contas bancárias conjuntas num envelhecimento não compacto de um com outro, de um que já foi tudo e agora não é nada, por outros ou outras que na vida se encontram e desencontram, afastam, e perdem para sempre.
Mas, desta vez, estando eu do outro lado, do lado das sevícias, da concupiscência, da leviandade, e quem saberá... da promiscuidade, sendo eu a tua amante prometida - desinibida e não assumida - que um dia, um destes dias, tu vais fazer primeira dama, tua primeira tudo, como se a outra te tivesse morrido longe e não nos braços, nesses mesmos braços que na véspera abraçaste, beijaste e amaste, como tua legítima, como tua única mulher e mãe dos teus três belos filhos. Eu, sou a outra; e isso bastava-me. Achava eu. Não bastou. Quando se vê a morte de frente, ela fala-nos. E, a mim, ela disse-me que era tempo de parar, que era tempo de olhar para mim e acreditar que valho mais, muito mais do que tu! Só me bastou acreditar nela!

Mas esperei por ti. No terminal das partidas no aeroporto de Zanventem. Quase adormeci. De Lisboa para Bruxelas, para dali partir para Zurique, a cidade dos amantes: para a nossa cidade! E tão belo era, como a coisa mais fantástica que eu já fizera, se não fosse o ter-te confiado os meus segredos, os meus encantos em esbulho completo de toda a minha alma. Que tu exauriste, que tu amassaste, que tu deploraste. Sabes o que te digo agora: Vai-te Foder!
Acreditar que te separavas dela, da tua mulher; que parva fui! Quando tantas vezes o disseste, tantas vezes mo replicaste, por debaixo dos lençóis, por debaixo dessa tua outra vida em que eu continuava fielmente a creditar (como se tal fosse possível, tu, e todos os outros homens que o dizem, que o prolongam e adormecem no tempo, e que, mesmo chegando quase à quinta geração em que filhos, sobrinhos, netos ou sobrinhos-netos, já todos mortos, se fazem ressentir) e tu, e todos os outros, ainda continuam a dizer que a deixam, à legítima, para virem para nós, para nossos braços; e nós, mulheres, acreditamos. E tanto, que ainda de bengala na mão, dentadura postiça e cabelos brancos (mais os que não existem do que os que ficam) continuamos a esperar que tal se verifique. E, depois então, sobre a vossa tumba ou sobre o vaso das cinzas, escarramos, choramos, ou lastimamos a tão má-sorte de nos ter calhado um valentíssimo aldrabão, um desordeiro de camas e mentes sãs - ou nem tanto, pois que nem todas somos assim tão inocentes...
E nesta tão amarfanhada situação de pensamento e, contradição, eu, sentada e desesperada por te ver chegar, fui arremessada de sopetão para o inferno; para o pior deles: o inferno de todas as dores, de todos os males, em fumo, ardor, e desmembramento: de corpo e de alma. Meus, e dos outros.

Aeroporto de Bruxelas-Zaventem: hora local 7 horas e 57 minutos
Um trovão. Um rebentamento. Um não sei quê que, de tão forte e tão precipitado, me fez deslaçar de pensamentos, membros, ou qualquer outra condição de comando ou ordem sobre o meu corpo e sobre o meu cérebro em raciocínio toldado. Ficou tudo negro de repente. E, com um cheiro ocre, a enxofre, a demónio. Deixei de ouvir. Deixei de ver. Perdi os sentidos.
Mas recuperei. Quando abri os olhos, tornei a fechá-los. Não queria ver. Corpos, muitos corpos. Sangue, muito sangue; postas e postas de sangue em cima de mim. Um pé. Uma pasta de qualquer coisa que não pensei logo poder tratar-se de massa encefálica, mas era-o efectivamente. Ou seja, os miolos de alguém que já fora um ser vivo, um ser humano e, ali, se despojara sobre mim, sem licença alguma, sem referência sua de ser ou ter sido simplesmente alguém que já vivera, amara - e sentira.
Estava tudo negro. Poeira. Silêncio estranho. Vozes recortadas que não eram vozes. Sons que não eram sons; pensei ter morrido ou estar prestes a isso, a embarcar na minha última fronteira do nada para o tudo ou vice-versa, sabia lá eu...
A realidade não o era e se esta se vestia de negro, eu era a viúva mais maldita da Terra sem nunca o ter sido. E tudo continuava negro, tão negro como o fumo que me entupia as narinas, o olfacto, e até a dignidade de me ver esparramada nos solos da Flandres, vendo que nada mais me restaria, do que a indigência nua e crua de me sentir um corpo sem alma e, talvez, uma alma sem corpo...

Um zumbido atravessou-me as meninges e sei que, de repente, fiquei sem ouvir. Na totalidade. A visão não sendo perfeita, esboroava-se de mim num não deleite ou talvez semi-consciência de me sonegar - ou quiçá proteger - o que poderia não aceitar em horrendo cataclismo de corpos e cabeças decepadas, como se um qualquer Henrique VIII por ali tivesse andado em fantasma do presente, em alma penada de um seu eterno limbo, sentindo que tantas almas lhe seriam pertença. Mas não eram. Nem dele nem dos terroristas que se fizeram explodir, levando com eles tantos mártires, não de Alá, mas de um Deus desconhecido que não teve tempo de tal parar, de tal estancar. Foi pena. Elevaram-se os melhores, com excepção dos do Oriente (ainda que muitos deles nascidos em chão europeu) que tão de mal com a vida sempre estão e em nome de um deus menor e, de ninguém, levam tantos com eles. E com eles partem. Só não se sabe é se para as tais tantas virgens, se para demónios transvestidos de anjos ou de outra coisa qualquer sem retorno e sem piedade - ou mesmo sem perdão...

Só hoje pude escrever. Só hoje pude ter a sensação de estar de facto viva e isso, é-me penoso. Muito. Talvez não tenha o direito de estar viva, não sei. Perdi a totalidade da audição, parte da visão e não sinto sequer os membros inferiores, ou seja, as minhas duas pernas que mais parecem dois tições ardidos ou fumegantes, como diz na Bíblia. E mortos, se já não me servirem de nada.
Fico para aqui a roer-me em mil pensamentos maus, tortuosos e macabros, e sem viço de esperança ou de me ver ter outras alegrias, pois que quem eu pensava amar-me tanto, fugiu a sete pés, fugindo de mim, fugindo de outras explicações que eu lhe pudesse invocar. Foi cobarde; foi traidor, como o são todos nestas circunstâncias. E, enquanto vou observando na televisão do quarto hospitalar esta feira de vaidades de presidentes a dançarem o tango e outros a lançarem árvores à terra e outros ainda a acobertarem gente que não é gente de bem, em gestos de traiçoeiras vontades ou conjugalidades políticas coesas de inverdades, o meu corpo arde-se-me todo como fogueira acesa, tal sarça ardente de Moisés, em que só fico eu em restolho de nada, em rasura de tudo o que podia ter sido, se não tivesse havido esta explosão dos amigos e eternos fiéis de Alá, num Deus que eu não conheço nem tenho honras de tal.

Estou ligada a tubos, a fios, e a sons que não distingo mas me dão a certeza e a contingência absoluta, segundo os médicos, de ainda estar viva. Não sei se o quero. Não sei se o mereço. Enganei-me sobre ti. Enganei-me sobre a vida. E isso, dói-me, muito, ainda mais do que o estar presa a esta cama, a este féretro maldito da burrice e da estouvada maluqueira de um dia te ter amado - ou simplesmente de ter sido tão idiota quanto o podem ser todas essas outras mulheres, tal como eu, que se deixam enganar por um breve sorriso, por uma breve troca de corpos que não de almas, suponho. E, a minha, está destroçada. Pior do que o meu corpo, aquele corpo que amavas e dizias ser-te pertença, ser-te teu, só teu; agora, nem meu é...

Não sei se quero viver. Eu sei que é estúpido, pensar assim, quando tantos inocentes morreram ao meu lado, eu sei. Mas Deus tem de me dar tempo, tempo que eu não sei se tenho ou, se quero ter, para voltar a acreditar que ainda é possível voar, amar, e tornar a voar e a amar, sem ser pelos céus mas por esses outros voos de alma que só os bons amantes sabem haver.
Cortaram-me as asas; cortaram-me as esperanças - e até, muito possivelmente (ou literalmente), o andar. Mas voltar a acreditar, não sei se me será possível, de novo. Agora, vou ter de desligar o computador e descansar, pois fi-lo à revelia de uma enfermeira que aqui anota tudo e me deixou neste desabafar. Ouvi um sussurro que andam ainda por ali, pelos lados do bairro de Schaerbeek (em que se alvitra terem detido dois suspeitos de terrorismo, com evidentes alianças cúmplices sobre este atentado, em Bruxelas), sendo que a missão ainda não está completa para a polícia belga. Oxalá. A bem dos inocentes. A bem de todos os que não têm culpa alguma de terem um outro Deus ou, ainda acreditarem que é possível os homens serem bons e não assassinos de si próprios. Como na minha terra se diz, haverão mais salamaleques do que breves certezas ou carismáticas investidas que bom fim tenham, fazendo parar, fazendo anular todas estas células terroristas mas, neoplásicas, que dão pelo nome de Daesh; e, se assim for, que Deus nos proteja, pois já não há mais por que acreditar ou, esperar, que um dia tudo possa mudar...

Em nome de todos os que pereceram, no metro e no aeroporto de Bruxelas, na Bélgica, a minha sincera homenagem, pois que Deus é Grande, sim senhor! (Allah Akbar!) Mas, há que afirmá-lo, para todos, sem se recorrer ao horror e, terror, de radicalismos - ou fundamentalismos - pronunciados de dor, sangue e morte. Deus é só Um, e não é cruel, crucificador ou matador!
Deus é vida e não morte; Deus é amor e não ódio. Deus, é tudo o que de contrário o terrorismo semeia, apregoa ou ceifa no nosso planeta.

A Humanidade, merece-nos mais do que isso em facções opostas ao que lhe foi transmitido ao longo dos séculos por sábios, profetas ou simples homens de boa vontade. O corolário da Terra não pode nem deve ser de estrutura bélica e sanguinária, pois, ao continuar-se assim, nada sobrará do que os nossos próprios despojos sobre leis que não cumprimos. De facto, Deus é Grande, na sua misericórdia, placitude - e omnipotente benevolência - ou já teríamos todos partido há muito deste enorme hangar de partidas e chegadas que se chama Terra. Fiquem em paz, então. Pela Paz, sempre!

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