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sexta-feira, 20 de julho de 2018

Estados de Alma

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Vagueando pelos mares de outrora sobre vagas corpóreas de medo mas vazias de sentido, por entre as encruzilhadas da vida que mais não são do que insidiosas armadilhas do que se deve ou não seguir, do que se deve ou não sentir sobre um mundo e uma vida que nada são, o pensamento liberta-nos da alma que nos diz em fráguas de temor e cilício, penitência e anunciação: Não vás por aí...

A Confissão
Somos todos pecadores. Não sabemos é de quê. Ou de como o fizemos ou porque o incitámos. Tal como cão raivoso que não tem freio nem noção, nós mordemos as amarras da vida para depois nos vermos ainda mais amordaçados e enjaulados sem pertença ou consideração.

Não é fácil a confissão. Nunca o foi. Em nenhum de nós. Somos o que somos, pedaços de carne mal-formados, trucidada e despudoradamente habitados em nós como desperdícios de biológica condição, numa retorcida ambivalência de corpo e espírito que nos não servem para nada. Não, quando estamos tão perdidos de nós, tão evasivos de tudo e tão cheios de nada que só nos apetece ver apodrecer o que já fomos em fisicalidade - e talvez monstruosidade - que um dia nos viu nascer.

As palavras não saem. O vómito sim. O asco e o nojo. O asco na impotência demonstrada, e o nojo da secura na goela que nada regurgita, mas que nos assegura que um dia quis gritar, quis desalmar com quanta força tinha que não aguentava mais. Nada mais. Nem o grito nem o estímulo de ver continuadas as práticas de toda a maldade do mundo. E se foi sonho, foi um péssimo sonho!

Não é fácil admitirmos que já fomos assediados, violados, estuprados, sodomizados e arrancados de todas as dignidades possíveis. Nunca o fazemos. Calamos tudo. E assim o conservamos, na mais pútrida e gélida manhã ou na mais invernosa noite de todas as tempestades em que desejamos ser o raio, o trovão, e todas as angústias da Terra sobre os escombros, as vielas e os esgotos de todas as ruelas por onde passámos sem termos visto ou sentido o cheiro a podre, o odor a morte, de todas elas. Mas sobrevivemos. Como sempre.

A Remissão
Não há anjos na Terra. Diabos sim. E se há anjos eu não os conheço. Mas os diabos sim. São todos diabos! E dançam para mim. Ah, como dançam! E riem, e anestesiam-me na dor amórfica de qualquer rendição ou remissão por mais pequena que seja. Dizem-me para continuar. Para ser aquele ser que um dia julgaram eu poder ser. Mas não fui. Troquei-lhes as voltas e hoje sou apenas... eu.

Já faz muito tempo. Naquele tempo não havia Céu. Nem Sol. Não havia nada que me pudesse salvar. Dos anjos ou dos demónios eu ainda não sabia (ou afastava de mim esses pensamentos). E nem tinha como saber; afinal, tinha apenas nove anos, nove púberes anos, aqueles mesmos anos em que ainda não somos adultos mas também já deixámos de ser crianças. À força! Não à laia do chicote, mas, à laia daquela perda de inocência que estalava no corpo como chaga de Cristo aberta. E isso doía. Ah, como doía!

Era Verão. Não lembro o mês. Ou não quero lembrar. O rugido de todos os demónios veio das entranhas do mar, daquele mar que eu tão bem conhecia. Um maremoto, disseram. E será que foi? Não sei. Apenas recordo o marulhar das ondas e o som das gaivotas assustadas pelo sono recortado de espuma e de mar impregnados de medo. Apenas isso.

Nada mais soube ou senti. Só depois vi as mazelas, as luxações, as maldições na minha pele. E tudo era obscuro e tão escuro como o foi naquela noite em que o mar se revoltou e me rebuscou do quente leito em que me encontrava. Foi um sobressalto. Não foram sombras nem vultos nem imagens de outros mundos; foi apenas a minha dor de solidão e de toda a devassidão de me saber num outro mundo que jamais conhecera ou soubera poder existir em tamanha assumpção.

Foram anos. Ou minutos. Foram horas... ou segundos. Não sei. Mas sei que outras vozes, outras almas, me consignaram que nada mais eu era do que um ser que eles próprios tinham fabricado, que eles tinham minuciosamente conceptualizado até à mais ínfima perfeição. Eu era deles! E esse poder, essa sujeição, de genómica estruturação extra-uterina - exultante na efabulação cósmica, pareceu-me - fez-me ver que, mesmo na minha mais pura ignorância, eu era um deles, como eles, no querer, no sentir, no desejar e até no instigar sem sopesar ou me queixar.

Tanto conhecimento. Tanta explicação. E tanta informação para a qual eu não estava preparada. Nem eu nem ninguém. Mundos que giravam, por outros que se transmutavam e ainda outros que se deslocavam como se o pensamento fosse somente um acto de contrição ou, em alguns casos, de alta resolução, em que todos ligados eram como simples e fraternos irmãos. Que reinos eram estes...?! Eu não o sabia. Nem podia.

Mas fiquei fascinada. E de tão fascinada ficar, quis saber mais, atingir mais. E mais não me foi dado ver nem conhecer. Como um brinquedo que aparece e depois desaparece; ou um rebuçado que não se consegue desembrulhar. Que sonho era este...??? E se não era sonho, que capricho da Natureza era aquele que me torneava as meninges na intersticial rede de todas as comunicações, de todas as intercessões, e me redopiava as sinapses como valsa primeira de noivos acabados de casar, confundido-me tudo, dispersando-me tudo numa fuga neural pegada, pois que o meu cérebro fulminava de tanta razão sem razão, tanto saber sem eu o querer, tanta afirmação sem conexão....?!

E eu tão pequena, mais pequena do que um grão de uva, farelo de farinha, de aveia ou de areia, daquela mesma areia de onde eu vinha, e grão de nada, de um planeta e de uma vida que eles plantavam. Então emudeci. Se é que alguma vez falei...

Estados febris todos os temos. Alucinações também. Mentiras...quem as não tem?! Mas para quem é uma criança, poder-se-à duvidar ou renegar, não admitir, por apenas colidir com outras razões, outras aferições instituídas pelo bem comum de que o melhor é o silêncio?! E que tudo não passou de um sonho, um excêntrico e muito caricato sonho que até deixou marcas na pele e no coração, além os lençóis que ficaram frios e mudos, tão mudos quanto o medo de uma infância perdida e quiçá jamais recuperada ou havida...?! Quem poderá responder a tudo isto, quem???

Abdução: o que é isso...???
Passaram alguns anos. Muitos anos. Tantos, que nem sei já do que estou a falar ou do que vivi - ou até do que senti. Os anos foram tantos que acho que até já esqueci. Ou quero esquecer...

Agora fala-se de chips. Que raio de coisa é essa??? Nem sei do que falam. Ou não quero saber. Se fui tele-comandada ou tele-transportada que me interessa isso...? Apenas quero viver em paz. Viver com o que tenho, se é que tenho. Não sou mais do que ninguém nem menos do que mereço, mas padeço de compreensão, de carinho e afeição, não por abraços não dados mas por sentimentos consagrados de ofertas que sejam apenas bênçãos. E que estas sejam de mera solicitude e de alguma doce quietude. É só o que peço.

Lembro-me de que era o tempo antes das vindimas. Um tempo, que já não teve tempo para me dizer que eu deixara de ser criança e que agora já era crescida. Conhecia o mal do mundo - o dos homens na Terra. E a bondade dos outros... os de fora dela. E pediam-me para escolher, arbitrária e seguramente, como se eu fosse um sagaz conselheiro ou juiz em causa própria. Absolvi e não condenei. Disseram-me que agi mal. Que tinha de culpar, que tinha de condenar. E eu não entendi.

Odiei. E por esse facto revoltei-me. Travesti-me de todas as emoções, de todas as manipulações, e segui em frente. Tentei. Pelo menos, tentei. Suores frios, tremuras, gritos, exaltações e outras perturbações. Vivi no Inferno. E se voltei de lá, foi porque de lá alguém me arrancou como se a minha alma já não me fosse tão pesada cá na terra que de lá a tivesse de arremessar. E o peso da culpa foi enorme! Tão enorme foi, que ainda hoje lhe sinto os grilhões  a arrastar...

Mais anos passaram. E ficou tudo enevoado, deturpado talvez do que uma mente conturbada pode fazer em cognitiva deformação e alguma confusão. Eles não voltaram, nem podiam. Não eram fantasmas nem anjos; nem sequer zombies... daqueles que os filmes retratavam e nós temíamos, enrolando os cobertores sobre nós, tapando cabeça e pés, corpo e alma, numa galáxia de horrores que só nós vivíamos; nós, as crianças daquele tempo...

A Salvação
Olho para o mar. Para o horizonte... e por vezes para as estrelas... quando cai a noite. E não entendo. Porque não voltaram eles??? Porque me deixaram aqui??? Porque me não ampararam quando mais precisei deles, porquê??? Que lhes fiz eu...???

Sei que tenho uma missão. Se é prioritária ou não, não sei. Ou se me é facultativa e até omissa. Eles não o disseram. Se o mundo vai acabar, também não sei. Mas sei que um dia eles vão voltar; isso sei! E nesse dia, esteja eu onde estiver, eles vêem-me buscar, eu sei que sim. Será que se esqueceram de mim...???

Falaram-me dos pólos magnéticos. E que sabia eu disso com nove anos?! Falaram-me do clima da Terra; das intempéries, das inundações, dos incêndios, das enxurradas e dos vulcões. E eu ouvi. Fui interessada mas pouco avisada para o que aí vinha. Que a Terra ia mudar. E eu com ela. E todos nós com ela. E eu ri-me e eles pararam. Como se o eixo da Terra parasse. E aí, envergonhei-me. Pelo tanto que não sabia, pelo tanto que a Terra de si me escondia. E chorei. Pela Terra e por mim.

Homens, mulheres e crianças. Animais e plantas. Casas, ruas e cidades. Aldeias e pastorícias, vales e montanhas, oceanos e desertos... ia tudo mudar. E aquele que se dizia humano, ia ser outra coisa; algo que não percebi, algo que não entendi à primeira. E depois aquiesci na relutância de toda a minha pujante ignorância infantil que detinha ou retinha em mim. E aí gritei, supliquei, rebentei com todas as forças havidas em mim para que o não deixassem, o não permitissem, e eles apenas disseram: «Está escrito nos céus que assim será; pelo bem de outros céus, de outros seres, de outras vidas.»

Não!!! Não podem deixar morrer a minha gente, a minha terra, mesmo sabendo eu que não era a Terra que nos ia deixar... mas nós, os seres que nela habitavam.
«Podemos mudar! Podemos aprender! Poderemos recomeçar!» (mas só ouvi o silêncio...)

O Universo deve ser um caos gelado; uma entropia desgraçada em que ninguém fala e todos têm razão, antes e depois do vendaval; e tudo às avessas, para depois ficar tudo bem (?!) ao contrário dos terrestres em que todos se dão de razões depois da bulha e ninguém se assume culpado ou inocente, fugitivo à lei ou carente de outros tratos. Sim, temos muito a aprender!...

«Há salvação ainda...» (Ouvi ecoar numa voz que não era voz mas simpatia de um qualquer tenaz interlocutor, mas em simultâneo, algo que presumi ser cego, surdo e mudo, ou talvez invisível ao meu olhar. Mais tarde soube que a isso se chamava de... «Telepatia». Que coisa estranha. E pensava eu que a «Alice no País das Maravilhas» é que era confuso...

E mais não sei, porque acordei, e com aquela desagradável sensação de ter andado à pancada e ter ficado toda amassada. Ou, à roda de mundos, outros mundos que jamais pensei conhecer e, reviver, algo que nos livros da escola nos não ensinam para aprender. E se outros houveram que estes ensinamentos souberam, então quem sou eu para duvidar do que me aconteceu...?!

E se não são estes os caminhos, digam-me então quais são, sobre pedras erguidas ou muralhas erigidas, que mais será o que me deu do que tanto me ensandeceu e ainda hoje me acerca, vendo eu que não basta ir à Lua - nem a Marte, Saturno ou Plutão - para sermos fartos e grandes, heróis e não malandros, pensando que, afinal, por Confissão, Remissão, Abdução ou Salvação, eu possa ter finalmente paz no meu coração.

E se «Estados de Alma» todos temos, como é sabido - uns mais do que outros é certo - aprenderemos que saber ouvir é uma riqueza e, sonhar com os anjos outra, ainda que eles nos digam que o nosso reino está para acabar e outro rumo vai encabeçar neste belo e dulcífluo paraíso que é de todos nós, mas que um dia se vai finar; para mim... para ti... para todos nós...

Afinal, Estados de Alma, podem não ser apenas nossos... mas deles também... orando nós, em sonho ou em calamidade, que Eles não tenham outros Estados de Alma, tal como outras almas igualmente indignas de nós... E se tiverem, não tenham medo, pois tudo não passou de um sonho, apenas um mero e estranho sonho que se tornou real porque o deixámos ser...

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