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quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A Trovoada

 
Outono de 1919
"Raios me partam, se «aquilo» não era um trovão!? Juro-vos que o ouvi em trovoada seca dos restos do Verão!...Não entendo...juro-vos que não entendo!"

Serra d`El-Rey
A noite estava húmida em orvalhada imperiosa como sempre em inícios de mais um Outono agreste de folhas caídas e mondas a principiar. Nada se descurava na jorna encomendada a homens e mulheres a seu mando. Tudo tinha de ser perfeito, nas ordens impostas e no cumprimento das mesmas. Maria, mulher robusta de ancas largas, feições cortadas à faca e trejeito de poucas amizades (tendo a seu cargo as restantes cinco irmãs por deslaçamento materno, tendo a mãe de todas fugido com outro homem que não o progenitor) e, caber-lhe-ia em sorte o sustento e a criação de todo um farto e complicado fardo a partir daí. Nada que a assustasse. Já lhe viera em caminhos escuros e avessos vários desmandos de entre estes, um canalha de bigode farfalhudo e cheiro a vinho de cair para o chão, recortando-lhe o destino de mais uma cavalgada na velha égua em assomos de mulher amazona, guerreira e lutadora a quem lhe fizesse frente. Puxou de uma arma, arcaica e de tempos foragidos (que nem a própria sabia se despencaria em alvo a atingir tendo sido pertença de seu pai em outros tempos também, morrendo com esta à cabeceira não fossem os espíritos tê-lo querido levar antes da sua hora) - admitiria em estertor de morte - e, voltando ao início, dispararia para o ar em pretensão de afugento e corrida veloz no incauto meliante. Consumada a fuga em pernas para que vos quero, pois que a Maria M. era mais valente e façanhuda do que qualquer homem «barba-ruiva» das redondezas, e depressa se livrou das investidas daquele ou doutro qualquer que se lhe atravessasse no caminho, capando-o dos seus intentos e, dos seus apêndices, enalteceriam todos os que a conheciam e...não defrontavam. Assim era de facto. Assim foi, esta minha tia-avó paterna e da qual, me orgulho em eternidades latentes que aqui vos deixo em homenagem póstuma.

Voltemos à cerrada noite escura de Lua escondida e nuvens ausentes. Naqueles tempos, o negrume nocturno era incomparável aos dias de hoje - ter-me-à elucidado a minha avó e irmã desta. Era impensável haver iluminação naqueles montes, vales e declives por entre pinheiros, eucaliptos e vegetação bravia de toda a espécie. A Maria era uma mulher sem medo mas era mulher e isso acarretava perigos apesar de toda a orla idiomática que a compunha de guardiã das irmãs e de todo o campanário que lhe pertencia por direito próprio. Era forte, indomável como as feras dos circos que por ali passavam de vez em vez e...não muito longe da «mulher com barbas» que faria o gáudio e deslumbramento de certa forma incestuoso, nos tantos que se lhe comparavam em bigode ou em peluginosa amostragem de braços, pernas e buço. Assim era.
Naquela noite, madrugada adentro, pelas serras entre Óbidos e Peniche, a Maria lá iria mais uma vez em excursão de mula ou égua por si montadas em cavalgada acertada de passada perene sob cascos martirizados nos socalcos mais íngremes das enseadas. Já perto do cimo do monte - onde Maria tantas vezes se deslocara em conversações de trocas comerciais de trigos e centeios, aveia e outros cereais - se debateu com uma luz que a ofuscou, a encandeou. A égua assustou-se e laçou-a com toda a força contra o chão inclemente na batida frontal da sua cara com a poeira e gravilha dos caminhos. Partiu um dente e cuspiu sangue. Nada que a afligisse, a não ser aquela luz de tão forte ser em trovão não anunciado, rugindo como monstro do mar ou de um demónio nunca visto, sentiu. Olhou o Céu e viu-se só mas iluminada por uma auréola confusa mas brilhante em que um foco de luz incidia sobre si. Não compreendeu e emudeceu. A égua fugiu desalvorada pelas sebes abaixo e Maria, ficou só com a sua angústia de se ver endoidecida pelo estranho daquela situação, nunca por si vivida ou assistida. Tremeram-lhe as pernas, depois o coração que lhe ditava galgar mais depressa do que a sua égua pelos campos afora. Ficou estática. Não acreditava na Igreja, nos padres da sua ou de outra qualquer aldeia e nem sequer os rumores vindos de Ourém ou Fátima ali perto - que parecia longe demais...- na anunciação divina de uma aparição, havia já dois anos atrás e na qual ela, Maria, não acreditava. Só acreditava em si, na sua força no seu pragmatismo de mulher de família, patriarca-mor de toda uma confusão de mulheres deixadas por uma mãe adúltera e pouco sábia que quase perdera em despojo doentio, todos os bens materiais e (morais) da família nas filhas que abandonara. Se ela Maria, agarrara pelos cornos essa sujeição a si imposta, porque haveria de se quedar por uma simples luz vinda do nada, em trovoada seca e estouvada, aberta em Céu iluminado?...

Voltou muda e queda. Voltou estranha à vila da Amoreira de Óbidos. Vinha literalmente mudada, disse-me um dia em conto inusitado a minha avó. Nunca mais foi a mesma. Nem mesmo, aquando a minha mãe, linda como um raio de Sol, lhe roubou o marido...anunciaria a avó. Outra estranha história, asseverei para com os meus botões. A minha bisavó ( e mãe de Maria e da minha avó) tendo obrigado a filha primogénita a casar com um homem da sua preferência e que, sendo muito mais velho do que esta, quase em idade de ser seu pai, a terá deixado pela mãe, anos mais tarde. Mais incestuoso do que isto não existe...nem mesmo nas telenovelas mexicanas dos nossos dias, convenhamos. Reiterada em obrigação inescrutável por uma mãe prepotente e tirana, a pobre da minha tia-avó, lá se teria encomendado em corpo e alma àquele asqueroso homem sem alma e sem escrúpulos também por contrair matrimónio com uma mulher que podia ser sua filha, tendo em seu campo de visão já, a própria mãe desta. Um susto! Mas aconteceu. Pior ainda, ter-lhe morrido uma filha de ambos em idade precoce em mortalidade infantil que na época era o pão de cada dia. Revoltou-se então e mandou tudo «às urtigas» que é como quem diz, nunca mais confiou em ninguém, nunca mais desperdiçou o seu tempo com nada que não valesse a pena e muito menos com alguém do mesmo género que tivesse órgãos genitais diferentes dos seus e uma cantoria do bandido similar. Nunca mais amou. Nunca mais sentiu nada que não fosse, a dor muscular do trabalho braçal e das responsabilidades de fazer fruir e frutificar os proventos familiares em terras a adquirir, campos a semear e negócios a destrinçar. Nada mais! Ou não fosse aquela trovoada maldita, sem nuvens, sem raios, chuva, vento ou lamento, e a Maria passaria o resto dos seus dias em perfeita harmonia laboral e consensual com o que lhe restava.

Morreu passado pouco tempo depois. A Pneumónica, Influenza ou febre espanhola, como queiram, apanhou-a mas não de surpresa. Uma amiga do peito em seus íntimos e últimos momentos, pegara-lhe a doença que ceifaria milhares de cidadãos por toda a Europa, passados que estavam os infortúnios de uma Primeira Grande Guerra que lhes levara os homens e agora, levava tudo à sua frente sem destino, sexo ou identidade territorial. Fora assinado em 28 de Junho do ano de 1919, o Tratado de Versalhes, o Tratado de Paz imposto como ultimato pelas forças vencedoras - Inglaterra, França e EUA - à Alemanha. No tocante à ciência e tecnologia, existiram observações do eclipse total do Sol que confirmariam a teoria de Einstein sobre a relatividade. Houve a descoberta ou «transmutação» feita por Ernest Rutherford, na produção de um átomo simples a partir de um complexo. F. W. Aston realizaria a primeira separação de isótopos por meio do espectógrafo de massa. Hans Vogt fez experiências com o sistema de filme sonoro. J. Alcock e A. Brown atravessaram o Atlântico em avião em 16 horas e 27 minutos. Houve igualmente, o primeiro voo com êxito de helicóptero. E tudo isto teria sido uma feliz vicissitude na ascensão e glória no desenvolvimento em todos os seres humanos, se acaso a epidemia gripal e fatal em muitos, se não tivesse propagado quase de imediato como rastilho de pólvora pelas gentes e povoados de toda a Europa já de si, muito sofredora por guerras, lutas e batalhas infames de toda uma história universal sempre igual. Por Maria, minha tia-avó que pouco ou nada presenciou de todas estas iniciáticas aventuras científicas e de evolução vigente, apenas posso aqui assegurar de que, mesmo hoje, aquela luz de trovoada seca ainda me persegue, inebria e seduz. Também emudeci. Também bloqueei mas graças a Deus e a todo o Universo consistente em si, eu aprendi que mais vale acreditar que somos abençoados do que amaldiçoados, por todas essas luzes de um Céu imenso de mistérios e maravilhas desconhecidas, ainda que, provindas de uma qualquer trovoada seca, molhada ou simplesmente fabricada. Seja lá, por quem seja...descansa em paz, minha tia-avó Maria.

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