Ano - 2121 Portland - Oregon (USA)
Estou enregelada. Nunca fui muito de ficar à espera por ninguém. Não gosto de esperar. Estamos em Maio mas o vento glaciar que se faz sentir, penetrando-me na pele, lembra-me o inicio do Inverno em que tudo está branco de neve e o Céu esse, parece mais azul. Vou mudar a minha vida: toda! Vou libertar-me finalmente do jugo familiar que me manteve acorrentada até hoje. Tentei ser uma boa filha mas pelos vistos não o consegui. Pior para eles. Também não se devem importar muito...ficarão com as suas sessões, congressos e palestras inócuas e iníquas por certo, de entre os seus iguais. Não estou a ser injusta, antes observadora do que nestes vinte anos de idade, me impregnaram na lascívia de "bons comportamentos" e mulher numa sociedade cheia de vícios. Os meus pais não são carinhosos, nunca o foram. Ambos nascidos, criados e - subjugados - de famílias aristocratas norte-americanas, em senha póstuma da alta finança e da desfaçatez da mesma, não limitando gastos nem consensos de futilidades exacerbadas, pode-se dizer que estão bem um para o outro. Financiam campanhas e estimulam outras (ainda que avessas ás suas origens e delegações de ideologia assente) consoante os seus interesses do momento. De cariz vincadamente republicana, «apoiam» os democratas, apesar de neste século, as coisas estarem mais esbatidas e quem manda é "outro senhor". Vivemos uma nova era que de nova, só tem um nome. Houve um concílio a nível mundial para se debater em união e junção, este novo termo que para o efeito geral e já habitual nestas situações, serve apenas para comandar um só povo em ordem e rigor expresso de uma só lei universal.
É quase meia-noite e ele não vem...esperei a minha vida toda por este momento. Não fujo às responsabilidades mas antes à ignomínia ditatorial lá de casa que sempre me viram como a coqueluche dos pais em representação do que a sociedade (a deles) tinha de melhor para mostrar em saia de chiffon, sedas e laçarotes no cabelo como infanta de outros tempos. Até que me revoltei e comecei a andar como uma indigente ou sem abrigo de capuz na cabeça e jeans esfuziantes como uma colcha de retalhos das minhas tetravós. Criei o pânico e a retaliação de ambos os meus pais que se reiteraram a partir daí, de não mais me apresentar como filha aos seus comparsas em noites ou dias de eventos marcantes. Fui renegada e isso deu-me prazer, pelo menos até às próximas semanas em que me fartei de andar esfarrapada e, estropiada na alma por me ver ser assim tão pouco requisitada. Passada a adolescência conturbada, tornei-me uma boa menina, mais mulher e menos ladina, tendo a aprovação dos pais. Tréguas, senti. Por uns tempos...
E se ele não vem...? Corto-lhe os ditos! Não. Não corto nada, se o amo tanto...mesmo que os pais o considerem uma nulidade só porque é pescador (de pesca artesanal). - Mas quem é que nestes tempos, em pleno século XXII, ainda faz pesca artesanal, minha filha???- Impor-se-ia a minha mãe deveras irritada e com o seu recauchutado nariz empinado sobre mim. Aquiesci mas não me verguei. Havia de o ter para mim, ele tinha de ser meu, o meu único homem na vida e que importava se era um simples pescador das docas de Portland?...Eu amava-o e só isso importava. Para todo o sempre. A mãe chamara-lhe um dia de demagogo idiota e o pai de, parasita inútil, assim mesmo...ante a minha aflição e pasmo de sentir que nunca o iriam aceitar como futuro genro ganhando a vida honestamente. Que se lixassem! A vida era minha e depois porra, não estamos nos séculos passados, para pretenderem que me case e «despose» um néscio qualquer acéfalo mas de berço doirado e contas bancárias de muitos zeros. Que coisa! Já nem no tempo das minhas avós isso se daria,,,penso. Não faz sentido, a sério que não faz! E depois eu não sou estúpida nenhuma. Admito que fui para a Universidade tirar biologia marítima mais por amor ao meu amor do que por vocação pessoal mas redimi-me a tempo e comecei a fazer o pós-doutoramento em biologia molecular o que me deu inclusive uma bolsa paga por mérito próprio para estupefacção dos meus pais que quase já tinham desistido de mim ao ver-me baldar às aulas para ir ter com o meu marujo de águas revoltas. Esse protagonismo abriu-me portas e deu-me possibilidade de estagiar também ainda que tivesse começado por trabalhar no Centro de Pesquisa e Investigação Aeronáutica de Seattle de onde vinha a correr para me encontrar com o meu amado. As diferenças culturais podem ser um obstáculo mas neste caso, não. Ele é um autodidacta e eu sou por vezes, a sua aluna mais fiel de quando fielmente ele me evoca os seus predicados em ciências que não conheço mas anseio por saber. Fala-me de outros tempos e outras condições de vida e eu escuto-o sem saber ainda que vou fugir com ele para a sua "palhota" à beira costa e que mal tem condições de higiene e salubridade para um, quanto mais para dois. Ou três...
Felizmente há luar. O meu destino vai ser feito por mim. A Lua diz-me isso. Só ela está a salvo destas nossas toxinas terrenas, destas aglomerações nefastas de um ambiente tão contaminado. Sofro pelos demais deste mundo sempre igual, ainda que com mais ênfase nos mais pobres, nos mais limitados de recursos que não têm para onde se virar. Estamos a ter problemas muito graves com o aquecimento global mas felizmente já existem métodos bem melhores do que no Passado para o tratamento de doenças virulentas ou para as plantações e colheitas de alimentos. Nem tudo é mau neste século. Ainda há amor entre as gentes na uniformidade de sentimentos e consciência que temos a cada dia mais de fazermos, de mudarmos e de acreditarmos que este Mundo vai ser melhor. Podemos não estar tão dependentes das energias conservadoras, tendo aderido às outras, inovadoras de energias alternativas e menos poluentes mas sei também de que, enquanto houver o lucro, a ganância e uma certa demência pelo ganho fácil, tudo se torne tão cerrado quanto o coração dos meus pais ao saberem-me agora transviada por um «criminoso» pescador de olhos azuis e alma fervente.
O mar está bravio. Os meus cabelos soltos enunciam-me que a maresia nestes lhes confessa segredos. Que sou uma herege, uma falsa uma filha não pródiga que abandonou o lar quente e confortável da casa dos pais. Sinto-me mal. Mas depois...vejo uma luz ao longe que pisca em intermitências estranhas e me dita que devo seguir em frente, que não tenha medo e que me vigia. Vigia sempre, sussurra na minha mente atormentada. E eu acredito. A luz desaparece e eu obtenho respostas. A mesma luz que me seguiu desde que nasci, a que me ouve, a que compreende, a que me aceita como sou. A que me vigia os passos e nunca por nunca, considerará heresia o acto de partida do berço humano que deixei pelo outro que farei meu futuro.
Ouço o trilhar de pneus no caminho estreito de gravilha e mato que o conduz até mim. Ele sempre veio! Já vejo as luzes do seu (jurássico) automóvel que para mim, é a mais bela abóbora de encantar e que me dá a certeza do seu amor por mim. Pode haver viagens até à Lua...mas esta, para mim, será para sempre a mais bela viagem da minha vida. Heresia minha, seria recuar. Não mais o farei. Hereges sim, os que o mitigam por outras avenças que não têm nada a haver com o amor e isso, neste ou noutro século vindouro, será sempre igual. Com viagens ao espaço ou fora deste...agora, vou ter com o meu amor. Até breve!
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