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sábado, 10 de agosto de 2013

A Revolução

A Revolução de Abril entrou na minha casa como um assalto à mão armada.
A nossa vida nunca mais foi a mesma!

A rádio emitia sons militares consonantes com o momento de extrema gravidade, recortados pelas intervenções fugazes dos locutores que, proclamando calma  e uma certa segurança de imposição nos ouvintes, estabeleceriam a incongruência das mesmas ao anunciarem que se dera um golpe de estado.
Como já deu para notar, calma e segurança foram epítetos que a  minha mãe não sentiu pois que, tomada por um medo visceral e em pânico generalizado - por temer pela sua integridade física e dos seus -  entulharia o automóvel com os filhos, as malas, a empregada, o cão, o gato, os dois periquitos ( não necessariamente por esta ordem...) e, o espírito do meu avô paterno que sempre nos acompanhava. Tossia, roncava e...gaseava o ar em jacto flatuoso sem que ninguém soubesse de onde provinham aqueles sons não terrenos ou, de um além tormentoso. Feito isto, rumaríamos à terra. Lá, estávamos seguros. A salvo. Dos canhões, das bardas de soldados barbudos, das G-3 e Deus permitisse, dos eflúvios reaccionários que já ecoavam no ar de uns contra outros e ainda a manhã ia no atrium...

Veio a liberdade, então. E com esta, todo o tipo de excessos e turbulências dos que partiam, dos que ficavam e dos que se amaldiçoavam por terem sido empreendedores numa terra de ninguém. Os meus pais ficaram, apesar da balbúrdia crescente de uma democracia ainda no ventre materno, supus. Nos liceus agora ditas escolas secundárias, ninguém estudava nada e a nível universitária a coisa ainda era pior com as consciências ditas também, mais presentes e maduras por uma nova maneira de ser e pensar. Tudo era manifestação aberta e comício frutuoso, para os que organizavam e os, que se deixavam arrastar. Uma loucura! Desorganização, tomada de massas que iam do tipo, "Maria" vai com as outras, e uma nova ordem nacional de abrir mentes que mais parecia ser de lobotomia geral. Houve percas. Danos colaterais. Eu, fui um desses pois que não pegava num livro sequer e chumbei o ano. Mas aprendi a lição. não temos de ser clones visionários dos outros. Temos de pensar por nós próprios. Os pais não retaliaram até porque, a situação de desmando e desregrado do país, era unilateral e que cairia para o pior dos lados, na sujeição a todos de seguir uma linha marxista-leninista que a poucos ou nenhuns agradavam. Foi o pior período do meu país! Todos se contrapunham, guerreando entre si.

Enquanto isso, eu era uma jovem feliz. Exceptuando a parte dos estudos negligenciados, eu não era burra nas também não muito esforçada. Era a época dos Deep Purple, dos Pink Floyd, Frank Zappa, Black Sabath e tantos outros. Em férias havidas, a tudo se ouvia, a tudo se aludia com um afã fervoroso, fosse na garagem de um qualquer amigo, no sótão, na adega ou simplesmente por entre quatro paredes de um qualquer quarto de persianas fechadas e espíritos abertos. Eu fumava e hoje, lamento-o. Mas todos fumavam como uma espécie de graduação dignitária ou clã hierárquico em que poucos entravam. Idiotas que éramos mas...também tínhamos coisas boas. Uma delas, a reunião de todos no atrium da igreja ou no café central da aldeia em cantorias e melodias de outros tempos. De viola na mão e um copo na outra, lá se ia cantarolando a música tradicional portuguesa, folclórica ou ligeira do que se ouvia na rádio.
A esperança cercava-nos numa deliciosa sujeição de despudorada irresponsabilidade e afincos de maior que não fosse o divertimento estival, pois de tão jovens que éramos, nada se nos podia atravancar, íamos dizendo entre nós. Quanto a mim, por entre leituras de Erich Maria Remarque, Tolstoi, Jorge Amado e outros, tentando não me desmotivar na aculturação devida, aferiria igualmente de uma maior lucidez política, não me associando a questões menores ou, opostas ao que me indiciaria na personalidade como alguém que se preocupa mas sem fundamentalismos haver. Nunca fui fã de desejos questionáveis e quiçá obsoletos na tomada de posse de bens que não me pertencem ou princípios que não me assistem como pessoa de bem que sempre fui também. Introduzo agora o tema então: estou a falar da "célebre" reforma agrária...

A democracia não era roubo! Não podia ser roubo! Se alguém deturpou isso...teria de pagar por isso! E pagámos...todos! Ainda hoje, o país, o Estado que somos todos nós, estamos a pagar por esses erros de palmatória de umas quantas cabeças pensantes e por certo, desgovernadas, que revogavam na lei da reforma agrária, o ex-libris do momento para a saída airosa de um país agrícola e rural à beira da falência. Não muito diferente dos dias de hoje, apenas com outros desmandos e dívidas externas!...
Foram expropriados terrenos e latifúndios, onde tudo foi rasteado à sua passagem. Não foi bonito! Mataram-se animais, venderam-se outros (para proveito próprio), saqueando tudo o que encontravam pela frente. O Alentejo vivia dias de um terror organizado pelas hostes comunistas de então que sentiam e acreditavam de facto de que tudo lhes era devido e permitido sem vinculação oficial de propriedade e direitos haverem sobre as mesmas. Um devaneio!
O meu pai sofreu na pele. A minha mãe, também. Por dias e noites, seguidas de uma aflição só. O meu pai avisado que fora por um seu amigo que provavelmente estaria inserido ou camuflado por entre os demais - dos muitos que compunham essa força de ordem e tomada de terras - de lhe irem saquear a herdade (malhadas em que possuía gado suíno) na manhã seguinte, agiria então de imediato.
Foram as vinte e quatro horas mais alucinantes de toda a sua vida, acredito, pelo que lhe vi espelhado em preocupação e itinerante busca, zelo e recolha dos seus animais num curto espaço de tempo. Os meus pais em noite de vigília e salvação dos suínos que deslocariam estonteados e sem dormir (uns e outros...) parecendo serem eles os ladrões dos seus próprios recursos na calada da noite, roubando o que era seu em silêncios premeditados. Transferiram-nos então, para a sua outra propriedade no oeste onde aguardariam as pocilgas meio vazias de outros seus iguais. Uma canseira! Mas que valeu a pena, terá dito o pai em exaustão completa, suado, sem forças mas feliz. Nós não éramos ricos, ao que loquaz e odiosamente os outros comentavam em termos jocosos, os da aldeia, os invejosos.

No dia seguinte, houve tiroteio e bombardeio de espingardas de caça e verborreia geral no que diziam ter sido uma afronta malvada e única na expropriação anulada que agora viam a seus olhos e, na tomada de posse de bens materiais subjacentes à herdade. A fúria latente em todos, espumando pela boca, dizendo impropérios e galvanizando todos na procura do bode expiatório e "bufo" que teriam entre si, foram-se quedando na admissão de pocilgas vazias e bens colhidos na véspera. As mulheres, vociferavam insultos, clamando pela sua mártir "Catarina Eufémia" que perecera às mãos de um guarda republicano e na qual eram fieis seguidoras, haveriam de jurar em sua memória, decepar da vida o pai e proprietário do gado que lhes fora "usurpado". Fizeram reuniões e comités no alcance do que desejavam de se erguerem a Lisboa e esganarem com as próprias mãos o mandatária da tal obra de esvaziamento dos bens havidos. Roxas de raiva, despudoradas na comicidade e no trato de um palavreado nunca limitado, arrogariam a morte ao dito e, a todos os seus. A coisa estava feia, terá anunciado mais tarde ao pai, esse seu amigo, delator dos outros.
Acabaria tudo como começou. Sem nada haver. Tudo garganta. mais nada. Encolheram-se, rendendo-se à pura e exacta evidência dos factos e, da razão. Nada lhes fora negado, por simplesmente, nada ser seu. Apenas e tão só, a verdade dos factos.

Mas haveria (ainda...) um problema a resolver: a Maria Claudina! Uma das vozes não dissonantes e provavelmente a mais legitimada, a mais acirrada, a mais insidiosa na tomada de terras e bens da região. Mulher de braços fortes e vozeirão de meter medo ao susto, quebraria uns quantos homens que lhe fizessem frente ou requeressem outros desmandos, outras ordens que não as suas. Uma mulher de temer, diziam. Pobre Maria Claudina - ao que o pai e a mãe posteriormente viriam a saber de si - que morrera decapitada debaixo de um tractor da monda e, em plena faina a mando e compadrio da sua associação e cooperativa por um Alentejo unido e livre de latifundiários. Paz à sua alma. De verdade. Mas em paz, a Maria Claudina não estava!...Viria, em espírito desassossegado e funesto, assombrar as noites veladas do pai...e este, sem pregar olho noites a fio, vendo-se rezar (coisa que nunca o vi fazer, a bem da verdade...) e lá se redimiria ante o fantasma crepitoso da senhora já falecida que apenas queria justiça...a sua justiça. De foice na mão e dentes arreganhados, correndo atrás do pai - assim ele o definiria já assustado com tanta insistência e pelos vistos, eficiência em si - evocaria o seu nome sem que o pai entendesse a razão de tal, continuando a refrega injuriando-o e, acometendo-o de mil maldições.
Passadas três semanas de insónias e vasto desespero pelos pesadelos havidos, o pai consideraria então, por um ponto final na questão, enaltecendo em nome e homenagem póstuma, a Maria Claudina. Erguer um santuário era demais (até pela razão de que a senhora não era crente, podendo ser ou não cristã...entendeu) mas efectivamente desejar paz e como tal, ser de bom tom e arremesso, fazê-lo num certo esplendor rural. Vai daí, mandaria executar e pintar o seu nome, no novo tractor da quinta. A vermelho!
Deu resultado. Nunca mais lhe apareceu em sonhos ou pesadelos. Para acalmia e paz do pai e...da pobre senhora que descanse lá no céu em paz, sentimos todos.
Feitas as contas e retornada a paz entre os dois, a história justiça lhes faria, aos dois. E, justificada esta, pelo que um e outro, ambos tinham lutado ainda que em opostas barricadas e ideologias entre si. De francas e fracas pertenças pois que nada levamos daqui, terá dito o pai um dia em certo remorso vigente mas sem culpa também, no que a vida lhe mostrara de guerras anunciadas nunca ganhas na sua totalidade!

Quanto a mim, continuava fugaz e libertinamente a viver os meus doces e ingénuos quinze anos de idade, ouvindo Cat Stevens e Joan Baez (em veia mais esquerdista...) onde pontualmente ouvia os meus músicos preferidos, numa rádio que não tivesse sido tomada pela revolução e pela enfastiante canção de intervenção em toada revolucionária, no tema da "Intersindical".

Foram tempos complicados. Mas passaram. Éramos todos muito jovens, ignorantes e possivelmente, carentes de uma liberdade que se mostraria irreverente mas também, excessiva. Exagerada mesmo, nos limites e fronteiras de e, em cada um de nós. Era tudo novo, muito novo para se acudir a tudo e tudo sair na perfeição. Cometeram-se muitos erros, muitos! Mas aprendemos. Pior, termo-nos esquecido disso. E o país, voltar a sofrer. Mais pobre, mais velho e não sei se mais idóneo. Mais bonito, está certamente! Porque nós o fazemos assim.

O espírito roufenho do meu avô, continua por aí a arvorar de, e entre nós mas agora mais calmo e consensual com o passar dos anos em que por nós esperará, lá do cimo do seu pedestal celestial. E parece-me que até sei ou sinto, que ele está junto à Maria Claudina que, eventualmente não se importará de ter mudado o nome neste registo pelo respeito e assombro do que sei e observei da sua vida de luta e mulher de crenças. Mesmo que, divergentes das minhas. Que importaria isso, lá do céu...ou não somos todos iguais à semelhança e figura de Nosso Senhor Jesus Cristo e seu Pai vigente...? Penso que sim. E todos o sabemos! Pela Paz, pelo Amor e, pela Sabedoria! É o meu lema.

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