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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

A Aventura

1970

O Brasil era campeão do mundo em futebol e está tudo dito. No Egipto ficara concluída a barragem de Assuão onde trabalharam cinco mil soviéticos numa mão de obra ostensiva de esforço e trejeito volumoso no que se desejava de um maior desenvolvimento entre todo o Médio-Oriente. G. Nasser estava orgulhoso, ainda que, com algumas contrariedades entretanto por - ainda meses antes desta obra estar concluída - ter havido a recusa do Governo Israelita a Nahum Goldman, Presidente do congresso Judaico mundial, na autorização para se deslocar ao Cairo.
Eram tempos difíceis, ainda que movidos por laços de engenharia fluente, os ventos não corressem plenos de harmonia também. Havia que solidificar e atenuar também ainda, algumas arestas políticas de uma certa antagónica apreensão entre as partes.
Mas isto eram coisas das quais, eu estava longe e só podia...nos meus dez anos de idade em que mesmo, sendo retratada a política internacional - ainda que ao de leve - na recente televisão a preto e branco para todo o país (na informação restrita e muito esmiuçada) eu viver apenas para os meus livros da "Anita" e dos desenhos animados ou infantis do Rato Mickey e do "Franjinhas..."da "Pipi das Meias Altas" e por aí fora...

E novamente em férias. E com os tios. Outros tios...(eram muitos e quase sempre, do lado paterno)
Entre Julho e Agosto, era uma animação que só visto. Pulava-se, berrava-se e vivia-se a plenitude de umas férias grandes, maravilhosas. Desta vez, por imposição maior de os pais terem de estar retidos na cidade, nós iríamos em primeiro com esses meus tios com filhos pequenos, mais pequenos do que nós os três deste lado, fazendo uma excursão de fedelhos ruidosos e por vezes, malcheirosos (ao fim do dia...supõe-se).
Como sempre, zarparíamos até ao Baleal, terra e ilha sonhadas há muito por todos nós, que contávamos os dias, as noites, as horas e os minutos até ao abençoado dia da partida. Eram aventuras até mais não, até partir desde o amanhecer até à noitinha onde fazíamos investidas de pés descalços ou de sandálias atrás deixadas na repercussão de debandada, aquando íamos tocar campainhas ás casas da ilha e depois fugíamos em jeito de malandragem iniciática e de maus aprendizes. Mas era tudo, mas tudo, muito inocente, sentíamos. Era mais por brincadeira do que por maldades afoitas das crianças que todos éramos ainda, sem contar com a cumplicidade com uma ou outra nossa empregada (quase sempre mais velha uns quantos anos do que nós) mas se reivindicava nessa mesma orgia nocturna de "toca e foge".

O meu tio era madrugador. Demais! Fazia levantar-nos às sete da matina, ainda mal nascera o dia em sol prazenteiro quando nos embutia de uma espécie de escutismo vigente em si, "obrigando" a fazer caminhadas pedestres por entre a espuma do mar e, as rochas muitas, daquele imenso areal, torneado entre a ilha e Ferrel. Por vezes, por Peniche adentro em dunas e desertos arábicos que imaginávamos desventrar. Era o tio que mais amávamos mas simultaneamente o que mais odiávamos, aquando nessas arreigadas travessias no deserto, nós nos queixávamos de dor nos pés e nas vértebras todas pelas longas caminhadas sem parar. Mas ele era implacável como capitão do exército ou general das tropas francesas por terras de África.

Numa dessas caminhadas de arrasto e arreigo marítimo de aquém e além mar, veríamos em terror e sujeição, o que nunca esperámos ver, mesmo que, em comando e acerto de um tio que nunca tinha dúvidas ou oscilações de personalidade em trato seu ou, com os seus. Mas, não sendo nenhum ditador dentro dos parâmetros familiares, lá se veria também em maus lençóis pela vez de um mar a descoberto e rochas punitivas em escarpa imensa sobre nós. Tínhamos "marchado" em fila indiana em comunhão com um sentido de Estado inalterável, tentando mostrar ao tio, como éramos bem comportados e de ordens suas arreigadas de cumprimento e afinco quando, nos deparámos com a clareza enorme de um mar a aproximar-se em maré-cheia até aos rochedos que fariam franquia e fronteira limite com a parte costeira de um litoral avesso a qualquer ser humano que por ali andasse. Só havia espaço para este e, para a rocha. Não, para nós. Passáramos a "Tromba do Elefante" e, estando já muito longe da ilha em visão esbatida da praia e das suas casas nas "Pedras muitas" (assim se chamava aquela área geográfica de areal e mar, rocha e céu...) e nós perdidos sem terra à vista e sem leme que nos valesse. Era tudo uma ilha, agora. Uma outra ilha, em que nós estávamos rodeados de água e mar salgados e umas rochas inclementes como Adamastores ferozes.

O tio ficou mudo de repente. Literalmente bloqueado no juízo e no raciocínio que fizera (errado, supostamente) de ter dado tempo para dali sairmos sem ser a nado. Há muito que deveríamos ter regressado e recuado na demanda de caminhada aberta sem bússola ou razão que nos tivesse sussurrado de que o mar avançava sem recuo deste. Não ouvíramos e estávamos a pagar por isso agora. O tio e a tia não queriam mostrar aflição mas estavam a ficar incomodados, tentando estudar a melhor maneira de sairmos dali vivos sem querer revelar de todos os seus medos em não conseguir subir a enorme escarpa de rocha e quase tapume que via à sua frente. Até que...milagre dos milagres, surgiria o Policarpo! E quem era o Policarpo, perguntarão vocês...? Ora o Policarpo era um senhor marujo de muitos anos, no corpo e no mar que se arrastava de dia e de noite por mares adentro em pescado seu e avenças suas de homem de uma só liberdade que nem a sua Ernestina, mulher encorpada e de bigode não aparado, lhe metia freio ou medo. Medo, só teria de não ver a filha emigrada na Alemanha que há tanto fora para lá e ainda não dera caras aos pais em saudade e sofrimento, enunciaria um dia ao tio e em lágrimas, o pobre Policarpo. Mas agora estava ali. E...para nos salvar. e salvou. Esbracejaria tanto que até fazia doer quem o visse, dando-nos a rota devida no caminho a seguir, no rastilho e na gávea imaginária sua, em que nos levava dali em debandada feliz de fim de percurso. Não olhámos segunda vez, encontrando de imediato, um caminho ou trilho menos escarpado e sinuosos que nos não fizesse cair como montanhistas de vão de escada em escalada sua.

A nossa aventura ainda não acabara. Galgámos aquela escarpa maldita que nos arruinou os pés e a alma, acreditávamos, mas ainda assim continuaríamos na fugitiva caminhada vendo já ao longe ao mar na vertical certeza de nos não deixarmos cair e levar como certa a meta a cumprir. Nunca mais pusemos a vista em cima do nosso amigo Policarpo. evaporara-se. Eclipsara-se com o vento ou, com a espuma do mar embutida nos nossos cansados rostos de crianças aflitas. Mas agora mais serenas e oblíquas em conformidade com a salvação premente daquele homem da ilha, deveras prestimoso e generoso, confiámos. E assim foi. Chegados ao Baleal em praias abertas e felizes, de gentes alegres e folgadas de cestos de farnel e chapéus de Sol, e nós correríamos até ao mar em banho assente. para trás ficara os náufragos que ainda há pouco éramos sem rumo ou destino que nos augurasse um bom fim. Como meninos da areia, meninos do Rio como diria um certo Jorge Amado, escritor brasileiro. Não lembrávamos mais o nosso salvador de lemes e barcaça, naus e vidas que nunca vivêramos como terá vivido o bom do Policarpo.

O que soubemos depois, arrepiou-nos. O Policarpo fora a enterrar na véspera. Assim mesmo! Ficámos siderados e para morrer, nós também. Viramos-lo e disso tínhamos a certeza. Salvara-nos de uma morte certa em afogamento e constrangimento como é evidente, sem tábua, bóia ou qualquer outra nau de salvamento haver. Apenas, os braços em arpejo e fortalecimento de um querer maior seu. O Policarpo voltara dos braços de Deus ou talvez, do seu anjo da guarda que lhe terá ditado em último acto post-mortem na salvação daqueles infelizes terrenos que ainda não haveria chegado a sua hora para lhe fazerem companhia. Deve ter sido isso. Apenas nos restava lamentar e orar por tão grande senhor da ilha que fizera esperar o reino dos céus por si, em nosso benefício. Estaríamos para sempre eternamente gratos à sua figura omnipresente e de boa catarse que lhe conhecíamos em que nem mesmo daquela vez em que o seu barco - mais casca de noz do que barco...- se terá voltado e este ficou à deriva uns bons pares de horas que não foram tão boas assim, descritas depois por si. Enregelou mas sobreviveu. Para sempre te admiraremos. Para sempre pensando em ti Policarpo, rezaremos. Tu Policarpo, que vieste dos céus em nossa ajuda, obrigado por eu estar aqui e te fazer justiça ad-eternum sobre o teu nome e, a tua magnânima vontade de nos seres um herói para sempre.

Hoje e sempre. Policarpo será um nome que não esquecerei. Devo-lhe a vida. devo-lhe todos os anos que já vivi desde esse funesto mas ao mesmo tempo, terno dia de uma salvação incomum. Estranha, no mínimo mas muito doce, sentida e reconhecida. A ti Policarpo, descansa em paz pois estarás certamente no Céu em nuvens maiores e mais leves que te compõem a alma de homem do mar e, de uma terra por desbravar. Fica em paz, meu bom Policarpo da Ilha do Baleal. Até sempre!

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