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sexta-feira, 2 de agosto de 2013

A Criatura

 

1968 - um ano controverso. Sanguinário e de confrontação violenta, a nível mundial.


Eu estava na terceira classe da escola primária nos meus inocentes oito anos de idade e nem sequer imaginava, o quanto esse mundo que por mim aguardava numa maior lucidez e integridade na sociedade, era o inferno, em delírio e suplício por todo o planeta. Os Estados Unidos da América bombardeavam o porto fluvial de Hanói (Vietname do norte) como quem rega as plantas do jardim; um seu líder partidário da não violência, Martin Luther King fora assassinado enquanto discursava num hotel de Menphis (Tennessee).
Em Paris, a cidade luz estava por demais acesa com os distúrbios e barricadas feitas pela associativa estudantil francesa que levaria ao encerramento das faculdades, gerando confrontos violentos e na sub consequência de mil feridos. O jordano Sirhan Bishara assassina em Los Angeles o senador Robert Kennedy, candidato à presidência dos Estados Unidos.
Como se já não bastasse tudo isto, deu-se a invasão da Checolováquia pelas tropas da URSS, pondo fim à "Primavera de Praga", provocando cinquenta mortos e quinhentos feridos. A única coisa boa deste agitado ano, o êxito e sucesso da primeira transplantação cardíaca feita pelo médico sul africano, Drº Christian Barnard. Por cá, pelo nosso canto lusitano de colete (ainda não à prova de bala) barrete e cajado na mão, as hostes reflectiam-se mais brandas mas não tenho a certeza se, mais calmas pelo derrame cerebral que o nosso governante português foi acometido, o reverendíssimo senhor professor Oliveira Salazar. Saiu então da cena política portuguesa mas contrariado, acredito. Marcelo Caetano viria seguir, tornando-se o novo chefe do governo português a 27 de Setembro deste ano(68). Mas tudo ainda, em pleno Estado Novo.

Voltando ao início...os meus pais sofreriam com estas mudanças, assassinatos e rodopios políticos do mundo em que viviam mas eu, nem tanto. Era pequena demais para isso. E mesmo reportados para uma nova realidade - pois Salazar mantivera-se no poder muitos anos, anos demais dizem alguns...-saberem e sentirem de que o país estava a mudar, ainda que ao de leve, não penso que lhes trouxe muitas alegrias se tivermos em conta as loucuras havidas após uma revolução de cravos e, espinhos para muitos.
Eu até nem era muito rebelde. Bem...talvez um pouco mas em férias. E com os meus amigos e primos que em ajuntamento estival, sempre nos reuníamos em desvarios e folguedos infantis. Eram momentos tão felizes, mas tão felizes que ainda hoje os recordo com uma felicidade estrondosa. Tirando um ou outro instante mais pecaminoso ou retardatário, doendo-me na pele ainda de quando abri a cabeça no chão da enseada e do beco que nivelava a casa da minha avó. Coisas de miúdos...

Vou então contar-vos o porquê desta abordagem minha que iniciei denominando de: "a criatura". Era assim que ela era chamada. Era deste modo, frio e distante, ausente mesmo, que esta criança era apelidada por todos. Acrescentariam ao rol de coisas feias, pungidas nesta, de coisa do Demo, do "Rabudo" e que só desse modo se poderia explicar ( enunciavam entre si por todo o povoado ) de ter sido uma punição ou acto não comutado na figura daqueles dois infelizes pais que teriam dado ao mundo, o ser mais feio e imperfeito que Deus nunca por nunca, botaria no mundo. Arrepiava-me ao ouvi-los em sussurro e pouca bonomia ou complacência para com estes desventurados pais da dita criatura. -Horrenda! Horrenda! - diziam em anunciação demoníaca, benzendo-se de seguida. Eu não percebia mas a minha curiosidade aguçada e desenvolvida para a criança que eu também era - e querendo saber mais, fosse em coscuvilhice infantil ou não - desejar conhecer tal infeliz personagem. Eu, os meus primos e alguns dos amigos - uns da cidade, outros da aldeia onde pertenciam, a dos meus avós - corroborariam na tese maldita em conspiração franca e ingenuamente imberbe - de irmos em busca e encontro da mesma. Saiu-nos caro. Joelhos esfolados e contusões expostas na veemente atribulação do que vivemos. ouvimos sermão e missa cantada, até pela roupa esfarrapada com que nos apresentámos depois aos respectivos pais e a certeza de um castigo maior que nos levaria dias e noites a remendar. Passo a explicar:
 
 - O casebre onde "a criatura" vivia era isso mesmo: um casebre! Mais curral e menos habitação e está tudo dito. Tínhamos reunido de madrugada, mal o sol nascera e, agrupados e temerosos - muito distantes de qualquer comparação com forças da ordem ou intervenção que fossem em missão de vida ou morte...-e todos nós, verdes de medo e do frio que se nos enfiara nas entranhas (mas tentando demonstrar o contrário) lá esboçaríamos a tracejado mental, do que nos propuséramos fazer: ir em busca e quiçá salvação...da criatura.

Sabíamos tratar-se de um menino. Um só menino. Uma infeliz e desgraçada criança que viera ao mundo sem poentes de esperança ou alegrias haver. De pequeno, de berço ainda, souberam-no esconder dos olhares da populaça, gente pouco obreira de sentimentos puros e solidários que se confrangessem com tão amargo destino daqueles seus vizinhos e conterrâneos. E afastavam-se. para que a dor não fosse maior do que o desgosto, refugiariam este pequeno ser em casa, fechado, trancado e longe dos olhares do mundo. Quando começou a crescer e a arcar forças, mudá-lo-iam então para o curral onde o porco, o burro e as galinhas pernoitavam. eram estes porventura, os seus "amigos". Pobre menino.
Nessa madrugada fria, apesar de estarmos em pleno Verão, nós todos - do tipo, parelha dos cinco - ao darmos com o curral que apenas possuía uma porta de madeira roída pelos ratos e pelo tempo mas de ferrolho cerrado e, uma janela igualmente estanque e opaca, o que não dava margem para qualquer vislumbre, assentarmos a ideia de nos pormos uns sobre os outros até a atingirmos. Esta janela, a única via de respiração e hipotética salvação - acreditávamos nós...- daquele menino, em que teríamos de a alcançar pois ficava a muitos metros acima das nossas cabeças. Empilhámos então umas quantas caixas de madeira, das que servem para armazenar frutas e por vezes ficam esquecidas nos campos, todas partidas e de caruncho à vista (mas ali, perfeitas como Deus quer) e aí fomos nós, um por um, ascendendo as ditas caixas até à altura da esconsa janela. Só dois se aventuraram e estes, eram os que lá moravam na aldeia. Nós, os da cidade, mais refreados para não dizer, borrados de medo em trânsito intestinal que já se fazia sentir, observávamos a obra arquitectónica das caixas umas sobre as outras com os nossos amigos lá encavalitados. Foi quando se ouviu um uivo de morte. Um ronco de dor e agonia. Um grito sufocado anómalo e por nós, nunca ouvido. Foi então que, levados por uma onda de terror e aflição, os nossos amigos (os que estavam pendurados) se viram derrear por ali abaixo, estatelando-se no chão. Corremos todos em busca de algo que nos fizesse ter asas nos pés para dali sair o mais depressa possível. Eu fiquei para trás. Passaram por mim, pisaram-me e nem quiseram saber. Fiquei por entre as caixas de madeira partidas e um sobrolho aberto que já me doía horrores. Esfolei os joelhos e mal me consegui por de pé. O pânico apoderara-se de mim. Quando tentei erguer-me, olhei para a janela com medo que desta saltasse um bicho-homem que me agarrasse e me tomasse em suas mãos como no filme do King Kong.


É impossível eu poder descrever na perfeição o que os meus olhos detectaram naquele momento, mas vou tentar. Aquela criança fechada ao mundo, fechada em si, abrira-me a janela. Não sei como. Ouviu-se um estrondo seco que provavelmente vindo do interior do curral e, por sua mão, este se ter libertado um pouco, sorvendo o ar da manhã como o melhor aroma da liberdade que nunca tivera. Queria fugir mas as minhas pernas não deixaram. Por segundos que lembro em pormenor como se fosse hoje, tal a memória efectiva que tenho desse instante tão caótico quanto iluminado, que posso dizer-vos que, aquele menino ( e, não sei se, pela primeira vez na sua vida) terá visto em mim, a pessoa amiga ou, a criança sua igual como até aí lhe não tinha sido permitido. Só vi uns olhos negros, muito negros pois ele não se deixou mostrar muito.
Subi (ou tentei ) até ao cimo. Nem sei porque tive aquele esgar de súbita coragem e altivez para o fazer mas fiz. Só não sei se por ele...ou por mim. Tinha de o ver.E vi-o.
Quase não possuía cabelo. Os olhos eram a sua maior arma de uma beleza inexistente. os lábios retorcidos em palavras que não lhe ouvi mas senti em desespero e uma tristeza infindável. Parecia querer fixar na retina do olhar, o meu mundo, o mundo que ele não conhecia. Eu ia tentando equilibrar-me (mal) em cima das caixas que reflectiam o meu medo e, o meu desespero também à sua semelhança apesar de, em diferentes patamares de experiência e vida pessoal. Eu andava na escola e ele, não. Eu brincava com os meus familiares e amigos e ele, não. Eu recebia carinhos e afectos de todos estes e ele, não. Já não era só um lamento no meu peito, mas um desamor desgraçado, por todos os não recebimentos desta pobre criança que como eu, só queria que a abraçassem e a, amassem. E depois, a liberdade.

E tudo acabou. Por trás de mim, em jeito fortuito e malévolo, supus, apareceria o que na época senti poder ser o seu pai, homem de feições rudes e de não muito bom trato, dizendo-me: Desce daí, rapariga! O que é que pensas que estás a fazer, ah?...Querem lá ver que tenho de pegar num pau e varar contigo daqui,ah?...- e ia-se preparando para tal, olhando em redor para o chão, procurando neste um mancebo ou junco forte que me derreasse dali. Nem sei como desci aquele amontoado de caixas que nervosamente e momentos atrás eu tinha colocado em ascendência. desci num só pé, que é como quem diz, numa só velocidade de passada solta e apressada, fugindo a sete pés.
No dia seguinte eu estava completamente dorida e aflita que a minha avó soubesse dos meus desmandos, ante aquele homem do Neanderthal que vivia na sua aldeia e era, infelizmente, pai do menino preso. Mas a avó não sabia de nada ainda e eu respirei de alívio. Não fora ter com os outros e nem fazia intenção de lhes dizer o que quer que fosse em gabarolice ou fanfarronice minhas. Eu não era assim e nem sequer havia motivos para isso. O menino continuava prisioneiro dos algozes dos pais e u nada pudera fazer. O meu maior fracasso até hoje, numa impotência nata do que achava que devia e podia. Erro meu.

Espanto maior então. Era domingo de manhã e, para pasmo e desencanto de toda a aldeia, os pais passeavam-se  no centro desta, em caminhada sem lisonja e sem graça, numa obrigação de sevícia e maltrato até para com eles mesmos, sob o olhar capcioso dos demais que nunca tal tinham visto em eloquente exposição como animal de circo. Houve um certo burburinho na praça em redor da família agora exposta de pai, mãe e criança arrastada de movimentos e lamentos. Grunhia, uivava, roncava e sei lá que mais mas no que me apercebi apesar de tão pequena, de ser a sua língua materna. Se convivia com o porco, o burro, as galinhas e outras espécies semelhantes, como poderia este, se exprimir de outra forma? Um horror! Tapei com as mãos a minha visão do que nunca desejei ter visto e, sentido. Ele, a criança, no seu físico de escama total num tom pardo e macilento, fez-me agoniar. O nojo que senti, não da sua terrível aparência de não humano (apesar de ser bastante comovente e assaz indescritível a sua forma humana) eu queria ter ido ter com ele e dizer-lhe que estava ali, que gostava de si e que se não importasse com os proverbiais sons que lhe faziam de animal acorrentado e de disforme ocorrência como um espectáculo de fraca qualidade. Mas não consegui. Fui fraca e cobarde. Escondi-me e perdi-me de mim. Ainda hoje o lamento. Não estive à altura com receio que a minha avó me descobrisse o acto de misericórdia e afecto naquele pobre ser que não possuía ninguém, a não ser a ele próprio. Fui indigna. E ainda hoje peno por essa vã e doentia recordação de um menino que, hoje eventualmente, possa ser um homem vivo ainda, mas em contínuo presidio fechado numa masmorra oficial qualquer. Não sei. Na época, os serviços sociais e de protecção nestes casos, não seriam os mais exemplares e sem duvida alguma os mais exímios no exequível de leis a aplicar. Nem se importavam. O país era pobre e havia muitos casos iguais ou semelhantes a este, era o que diziam e divulgavam sem mestria de preocupação ou grande afluxo de interesse nacional. Como tal, concluir-se-ia de que, o sistema nacional de apoio e intervenção a situações idênticas, ser extremamente deficitária para não dizer, nula!

Nunca soube o seu nome. nunca soube do que gostaria de comer, de beber, de cheirar. Se é que algumas destas coisas, aquela criança terá tido ou não, oportunidade na vida. Portadora de uma grave doença congénita ou cromossomática - uma vez que mesmo investigando, não consegui discernir o grau da sua doença degenerativa e mental - este menino teria merecido uma melhor sorte e destino. Porventura, nunca soube o que era um beijo, um afago de mulher ou mãe. Nunca soube nada. Só...os meus olhos. Só...a minha imagem. Nem fui capaz de me aproximar de si, sentindo o seu cheiro sem ser a bosta de burro e de porco, senti. Devia de haver mais. Muito mais para explorar de si, no bom sentido como é evidente. Não tive tempo para isso, aquando estive à sua janela em romance de uma Julieta invertida na situação em que o Romeu estava dentro de portas, trancado. Não era bonito. Era lindo! Os seus olhos negros, expressar-me-iam uma doçura que não mais encontrei em ninguém. Não, como aqueles. Foi o meu primeiro amor de um impulso que em vez de me consagrar no coração, mo franqueou na alma. podia ter sido meu filho, meu amante ou meu, outra coisa qualquer. Só posso dizer que não o esquecerei. Nunca mais! E aqui deixo a minha póstuma (se for caso disso) homenagem a uma alma maior do que o mundo. Por seus olhos e por sua voz calada, asfixiada. por sua alma imensa, obstruída, lacrada, num mundo que o não soube merecer. Viverás em mim sempre! Para sempre! Deus é testemunha. Um dia, nos encontraremos!...

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