Translate

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

A Hecatombe

 

Hiroshima - 6 de Agosto de 1945


E este seria o primeiro dia, do fim da minha vida...

A "Rosa de Tóquio" era uma tonta. Muito bonita, todos o afirmavam, mas tonta! Por toda a cidade havia o rumor de um ataque inimigo, e este 509º era a certeza disso mesmo. Eu pressentia-o, embora grande parte da população, o meu povo, pense que não. E ainda o ovaciona com galas e requintes imbecis de algo ostensivo e magnífico. Uns tontos...todos! Eu estava certa. Não foi só essa locutora de rádio que caíra na armadilha de libido incongruente e maldoso, fôramos todos nós, naquela minha ilha, não sabendo ou não querendo saber do que estes voos faziam à sua volta em bombardeamentos constantes pelas nossas outras ilhas japonesas. O perigo estava lá. Sentia-se no ar e, nos corações de todos nós, gente nipónica de trabalho e afinco, ainda que os ventos soprassem contrários...


Era segunda feira. Como sempre, tinha de me fazer à vida, levando uma carga de roupa à cintura em celha de zinco e outra de vime em cesta mais pequena do que seria o meu farnel de uma malga de arroz e peixe e um pão seco que sobrara da véspera. Não passava fome mas a fartura também não se fazia sentir. Eu não me importava, desde que isso desse para amealhar um dinheiro para o meu magro futuro. Andava pela casa dos dezanove anos e já se ia fazendo tempo para pensar em unir-me a alguém. Não que houvesse alguém interessante, pois todos à minha volta são tão pobres e sem recursos como eu. Também não tenho ambição de me enredar com quem não me mereça...rico ou pobre. e ricos por aqui, não abundam. A minha aldeia fica perto de Kabel, aproximadamente a 15 km de Hiroshima. Não é muito. Nem pouco...se formos a pé. O dia de ontem foi sufocante. Muito calor. Hoje nem tanto. Está uma neblina fresca e reconfortante.


8 horas e 43 minutos

- Já estou perto do riacho...e solto de
 mim, o peso que me faz curvar as costas e doer os ombros. sou nova mas a caminhar assim, ficarei velha em pouco tempo mas não tenho outro meio de vida ou outro sustento que não seja lavar a roupa suja dos outros. Talvez um dia, quem sabe, furar pela cidade próxima e ser operária ou funcionária dos estaleiros navais, quem saberá...


Era este o meu pensamento, aquando uma visão magnífica se apoderou de mim e de algumas de nós - outras raparigas de igual desvelo de lavadeiras como eu que se aproximavam - e registariam numa estática mas extasiada assombração do que viam nos céus. Como eu. As cores...maravilhosas! Como se os demónios se tivessem atrevido a fazer uma festa e tivessem libertado de si, aquelas cores iridescentes , deslumbrantes! Que rosas, azuis, violeta...anilados. Nunca tal vira. Após esse espectáculo de cores celestiais, a onda de calor. Surgiria do nada. Sentimo-la na cara e no corpo. O meu vestido de flores e de várias cores apesar de esbatidas já, colaram-se-me na pele. Como peçonha. Fiquei com medo. As outras raparigas gritavam agora em terror do que lhes acontecia de se verem mal trajadas (pois as roupas desfiadas, pareciam desaparecer dos corpos) e tudo à nossa volta, mirrar. A erva ficou escura de repente. As flores do campo, mortas. O ar, irrespirável. Tossi. Tossi muito. As outras também, caindo por terra nun chão queimado e de cinzas apresentado num instante de segundos apenas. Estávamos transidas de medo, repassadas de um pânico só. Corremos para a aldeia, para casa, ainda que as pernas nos não devolvessem a energia e a velocidade que todas desejávamos para nos socorrerem naquela aflição ímpar.


O "Enola Gay" tinha arrasado tudo. Hiroshima desaparecera do mapa da terra do sol nascente. Este bombardeiro pesado, pertencia ao tipo de super-fortalezas voadoras B-29. armado com um canhão e doze metralhadoras, atingindo os 560 Km. à hora e transportando oito toneladas de bombas, seria o carrasco daquela cidade, na qual despejaria, a impiedosa e primeira bomba atómica, por mão da presidência norte americana. O alarme ainda ecoaria por vinte a vinte e dois minutos antes de tal suceder. O povo não ligou, julgando tratar-se de aviões meteorológicos, aplaudindo mesmo o que vira descer dos céus em espécie de pára-quedas não sabendo que estes se destinavam a corroborar na especificidade de vários registos do inimigo. Os japoneses na primeira refeição da manhã, assim seriam surpreendidos então. A terra tremeu. Depois, uma bola de fogo imensa com uma configuração de cogumelo gigante, nefasto e necrófago. Uma onda de ar quente assolaria toda a cidade. Os ventos rugiriam em surdina veloz e fatal para todos os seres que àquela hora fariam a sua vida quotidiana dentro ou fora das suas casas. O estrondo enorme, evocando uma reacção em cadeia de tormento e dor, muita dor. Observar-se-ia uma coluna de fumo branco, projectado virtualmente, abrindo-se dessa forma (em cogumelo) subindo a doze mil metros. A temperatura chegaria aos 55 milhões de gruas centígrados. E aqui, o horror aconteceu. Pessoas incineradas, volatilizadas no ar. Os vidros despedaçados e que voariam no ar como setas lancinantes em projécteis mortais, ceifariam outras tantas vítimas que esmagadas pelos muros, vigas, tijolos e tantas outras coisas, se veriam morrer ante o efeito do sopro rasante das explosões e dos incêndios que grassavam por toda a cidade.
Os postes telefónicos ficariam carbonizados e as sombras humanas gravadas, no asfalto de passeios, muros e chão que haviam há pouco pisado ou ladeado. Uma mortandade. Dizer-se-ia hoje, um verdadeiro genocídio!


"Asahi", um grande jornal de Tóquio, revelaria de que Hiroshima fora aniquilada, perante a incredulidade e negação das hostes japonesas que o não admitiam. Houve incúria. Houve negligência ou puro autismo das elites militares nipónicas que o não asseguraram em veemente condição de vir a ser uma realidade aquele ataque total. Na base militar de trânsito, frente ao mar e na Prefeitura de Saitoma, os registos audíveis  de que o lançamento de bomba atómica estaria iminente, tinham sido anunciados por postos de escuta que enunciariam também de que a ordem expressa de tal, viria de Truman. Não ou ouviram, estes. Ou, subestimariam a dita ocorrência que, na manhã de seis de Agosto, se tornara uma evidência. E pior. Três dias depois, um novo ataque, um novo horror em Nagasaki. E aí...nada a fazer. Guerra perdida. Os últimos Kamikazes atiraram-se ao mar. Aviadores, oficiais e chefes da Marinha Imperial, com o Almirante Onishi, juntando-se no palácio do Imperador, fariam "harakiri" (em suicídio colectivo).
E, para piorar ainda mais as coisas - se tal era possível ainda...- o exército russo, rumaria à Manchúria em invasão de guerra declarada a estes. O caos na terra do sol nascente!


2 de Setembro de 1945

 
 A bordo do couraçado"Missouri", fundeado na baía de Tóquio, o ministro dos negócios estrangeiros japonês, assinaria a Acta de Capitulação, o que eu já não ouviria por estar demasiado doente, padecendo numa cama de hospital improvisada no Banco da cidade. Preferia ter falecido na minha aldeia mas os meus familiares optaram por me trasladar para ali. Queriam salvar-me, pobres coitados. Inútil! As febres altíssimas, aladas às chagas do meu corpo que me incendiavam por um todo, não me dariam tréguas em alucinações constantes e difusas. A minha mente exalava um rubor (à semelhança do corpo) extenuado e desenfreado de uma lucidez que momento a momento, se ia desvanecendo de mim. Delirava. Eu era uma chaga só. De corpo e alma. Tudo me ardia. Não cegara e, infelizmente para mim, que teria de ver e ouvir o padecimento de outros em féretros anunciados - tal como eu - nos seus gritos lancinantes e lamentos muitos que a miúdo se deixariam de ouvir.
Por último, o circular rumorejante das espátulas do "refrigerador" do tecto que aspergia no ar quente como veleiro em mar aberto, (mar que eu não mais veria...) sendo o único consolo de frescura e apaziguamento nos nossos corpos escaldantes. Depois...o enevoar do que a minha vista já não destrinçava. Do último que ouvi, os passos apressados das enfermeiras perto de mim, afogueadas estas, sentindo ainda as suas mãos enlaçando-me e posteriormente, tapando-me com um lenço de cor crua em sinal claro da vida que de mim, expiara. De seguida...o silêncio. A luz...a enlevação. A leveza e a pureza da minha alma, libertas! A Paz, finalmente!


Não foi um sonho. Foi uma vida, vivida. Foi uma vida passada, acredito. Senti-o na pele e na alma ao descrever estes pormenores em alguém que já teve a sofrida vivência de um holocausto nuclear ou atómico, neste caso. Para quem não acredita, tudo bem. Mas reflictam. O nosso mundo é precioso demais, para estas terríveis consequências e questiúnculas horrendas sobre uma nova era nuclear. O nosso lindo planeta não merece que o façamos, ou pensamos sequer nessa destruição massiva que nos seria identicamente fatal. Vamos criar estruturas de outra forma ou, de outra forma também, fenecemos com a Terra. Vamos reconstruir algo que ainda esteja por inventar, mais que não seja, um novo amor por frutificar. É sempre possível isso. Sem armas e sem guerras. E apenas com amor para receber e mais importante ainda...para dar. Vamos fazê-lo. E, de certeza, sairemos vencedores!

Sem comentários:

Enviar um comentário