Há almas eternas, outras imortais e talvez até mesmo outras confortavelmente emanentes sobre o Universo; cabe-nos a nós descobrir quais as que nós somos, por outras que andam por aí...
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domingo, 22 de dezembro de 2013
A Última Noite
Se pudesse definir numa palavra a tua ausência, diria: dor. Mas teria de acrescentar igualmente: raiva, ódio, loucura, solidão e...nada! Absolutamente nada, depois que partiste e me deixaste só com essa dor e a angústia da tua morte. Nada mais!
Ano - 1980 Algures numa praia de Portugal
A dor: nada é mais corrosivo e execrável do que aquela dor que nos rói as entranhas como ratazana medonha, ímpia de sonhos e pesadelos malditos. Com a tua vida, foram atrás todos os sonhos e toda a esperança de mudarmos o mundo e corrermos caminhos que mais ninguém percorria. E, sermos um só, para a vida toda. Ou parte dela. Emparedei-me numa embolia de sentimentos tumultuosos e irascíveis de dor excruciante como Jesus na cruz, suponho. Revoltei-me. Amaldiçoei Deus e toda a sua corja de discípulos na terra, para logo depois me penitenciar tal como Judas na árvore, em clemência sacrificial ou mera auto-flagelação, não sei. Sou humana, não sou perfeita e não nasci para sofrer e muito menos para te ter visto partir sem sequer me despedir de ti. Socorri-me de tudo que estava ao meu alcance para que pudesses voltar ao Reino dos Vivos e não, ter-me deixado padecer em lamurias idiotas, especificamente por ninguém as ouvir ou talvez experimentar na dimensão de cilício terminal em que me depus e revi ao longo destas semanas, meses, anos, séculos. Sinto que te perdi há séculos e dói-me a alma, sim, porque a alma sofre, pena e fenece à semelhança do meu físico em esmaecimento permanente. Não tinhas que me deixar! Não tinhas de partir sem mim! Tinhas prometido, tinhas jurado por ti, por mim e pelo que mais consagravas que era a tua liberdade e, dizias, o teu amor por mim. Já nada resta agora...e eu, morro em mim, não vendo chegar a hora de te abraçar, de te colar a mim, de te sentir o cheiro, o sabor, a tua essência de menino-homem que eras e ainda és no meu coração; para sempre. Para sempre...
A Catarse
Naquele noite, disseste-me que me amavas e eu acreditei. A nossa última noite sem estrelas e sem luar mas que tu me iluminaste como se fosse sempre dia e eu, deixando-te ir em mais uma concretização pessoal que me dizias ser perene e pontual na profissão e empenho que exibias com o teu mais belo sorriso de então. Eras ostensivamente garboso tanto do que fazias como da farda que te suportava a demanda máxima de uma força militar que compunhas em espaço aéreo no transporte de vidas e almas, como a tua que esqueceste para trás e se colou na minha como excrescência doentia que nunca mais de mim se soltou. O serviço não era teu mas trocaste-o com um colega de profissão que tinha o filho febril necessitando de desvelos e cuidados paternos. E tu, prontamente, acedeste. Sem saber que o fazias pela última vez e, pela tua própria vida. O maior acto altruísta da História, sem dúvida, se to tivessem reclamado ou tu o tivesses sabido em vida. O Cesna em que voavas despenhou-se. Tu e todas as almas que contigo iam no pequeno avião pereceram. Fim da história. Para todos. Para alguns...mas não para mim que definho e não consigo viver sem ti, nunca mais! Decidi hoje. É véspera de Natal e não suporto mais ver os sorrisos das crianças, a alegria dos adultos, dos idosos, de todos sem que eu possa sorrir também, ainda que saiba ser este o meu derradeiro e último estertor de egoísmo que deixarei na Terra. Oiço canções de Natal e dá-me vontade de gritar, gritar ao mundo para pararem com tanta felicidade, tanta alegria, tanta esperança de vida. É hoje que vou morrer! Vou afogar-me nas ondas do mar na praia que nos viu ser felizes. Vou asfixiar tudo o que em conjunto aqui vivemos em união e sublimação do que desejávamos para as nossas vidas. Vou acabar com tudo! Agora! Tal como Maria Madalena, no seu despojamento, no seu sofrimento e mesmo no seu ascetismo fervoroso mas doentio em parte, de fugir ou ficar. Eu vou, não sei é...para onde.
A Salvação
A água do mar, gélida. Entrei. O meu vestido em bojo de enfunar como vela quinhentista sem vento nem lamento e eu, lavada em lágrimas, perdida de tudo, perdida de mim fui morrendo aos poucos naquelas águas frias em quase hipotermia latente. Vacilei mas não recuei. A praia estava deserta e o meu salvamento uma miragem, se acaso desejasse retroceder no acto impuro, insano, de me suicidar sem pejo nem glória, nem ninguém que me salvasse daquela agrura endemoninhada em que me investira. Estava só. Os pescadores há muito que haviam recolhido as redes do mar para a faina, não dia seguinte - pois seria Dia de Natal - mas, para que poisassem em segurança no cais desavindo de espuma e ondas revoltosas em véspera de Noite de Natal. E a consoada, ali tão perto...quase podia sentir o cheiro das filhoses, dos sonhos, das rabanadas, do vinho do Porto, do bacalhau com batatas, da perna de peru no forno (que tão deliciosamente bem a minha mãe confeccionava em todas as festividades do Natal...) e essa lembrança sufocou-me a lembrança e, o vómito de espuma, água salgada e dor, muita dor que senti encher no peito em último resquício de lamento, compaixão e ternura pelos que mais amava no mundo. Como estava a ser egoísta, Santo Deus (senti) mas era tarde para voltar atrás, muito tarde...e latejei. Pendendo a cabeça como criança recém-nascida, dei-me às ondas do mar, à sua incomensurável força divina de mestre timoneiro que tudo comporta em rebelião, motim ou simplesmente bonomia vigente em orla costeira traiçoeira mas digna de si. O ar salgado misturado com a água, cavernando-me os pulmões em total devassidão, ainda me deixaria recordar as palavras de Fernando Pessoa: "Ó Mar salgado, quanto do teu sal, são lágrimas de Portugal!"
O Milagre
Acordei no hospital. Pensei estar inicialmente nalguma antecâmara da morte em fila de espera de São Pedro ou outro qualquer Anjo divino. Só depois lembrei. Só depois compus o estranho puzzle em que me vira enredada como golfinho ou tartaruga nas redes pesqueiras e estas, talvez, bem mais nefastas ou mesmo cruéis pelo que tinha ainda de recordar e, explicar. O que recordei foi magnânimo. Feérico e digno de um conto de fadas infantil ou, simplesmente, a verdade nua e crua do que me foi revelado: do cataclismo individual, passando pela depuração ou purificação da minha alma, Deus e os Anjos abençoaram-me com uma segunda oportunidade de vida. Deram-me a mão. Eram Anjos lindos, puríssimos de vestes sacrossantas e alvas numa nitescência celestial que nunca eu havia visto em observações terrenas ou outras. A estúrdia desses vários anjos era tanta, que a melodia que compunham me soava a um jardim proibido de tão proeminente e espectacular na divindade assente ali. Soube mais tarde que foram uns quantos pescadores de ócio tardio ou labuta prolongada que, tendo-me observado em lânguida passada mas determinada mar adentro, se induziram na minha salvação se não de alma, pelo menos de corpo, terão julgado por si. E salvaram-me a vida! E eu, devo-lhes isso!
A Mensagem
Os Anjos falaram-me das Escrituras, dos Evangelhos e da encriptação dos Mandamentos que o Homem ao longo da sua História de vida ia consecutivamente alterando à sua condição e interesses. Contaram-me do macrocosmos em que habitavam e, de toda uma panóplia celestial ou mais exactamente, sistemas solares diversos em que viajavam e rumorejavam por entre várias civilizações suas conterrâneas e outras. Insinuaram-me de que a Terra estava em transformação e que, a breve trecho, estaríamos prontos para a terceira e quarta dimensões a que, nos tínhamos de adaptar e...transmutar. Que a conexão era uma só em espaço-tempo e matéria totais e que tudo fazia parte de um grande e imenso plano de Deus na união e pacificação dos povos extraestelares. Fizeram-me ver Cristo renascido e ouvir da sua mente as palavras: "Abwun A d`bweshmaya, Ameyn!" (Livrai-me de todo o mal, Amén!)
A Continuação
Não enlouqueci, mas quase. Estava viva e tinha de agradecer aos «deuses», aos Anjos, a Deus por isso! E acima de tudo, aos velado e prestáveis pescadores que se terão enregelado em convocação insólita para me sacarem das águas gélidas daquele mar de Dezembro. Agradeci. E respeitei o luto; não o meu, mas o que tinha de fazer pelo meu maior sonho de vida que partira de mim e, de toda a minha existência. Não entendi logo, aquando os pescadores da faina em visita hospitalar me concederam os parabéns, oferecendo-me botas de lã para bebé e eu, sem nada saber ou sequer suspeitar. Estava grávida e uma vida em mim a despontar que se salvara da minha incúria, do meu padecimento ignóbil de contar só com a minha pessoa em extermínio marítimo por vontade própria. Não tinha esse direito e muito menos de o perpetuar em pecado a título póstumo sobre a minha hipotética campa terrestre. Os Anjos afiançaram-mo mas com uma dignidade e sorrisos tais que mais parecia eu ter feito uma obra de benemerência e não, a terrível deformação humana de pensarmos que somos donos e proprietários das nossas vidas. Fiquei mais calma, mais sensibilizada com a causa extraterrestre e melhor, mais consensualizada com uma outra verdade, a de que não estamos sós, nunca estaremos, e só por isso vale a pena continuar com as nossas parcas vidas terrenas. Sobre a minha cama hospitalar estava um quadro que dizia: "Lacta Alea Est!" (os dados estão lançados!) e, onde soube posteriormente, ter sido oferta de um paciente judeu que, em gratidão e singela oferenda, aí se consagrou em perpétua mensagem sua do que ainda está para vir, do que - em hebraico - nos anuncia do que eventualmente já se consolidou na Terra em início ou fundação dos alicerces de uma outra verdade. A minha, é começar a viver. Por mim e...pela vida que possuo em mim. Para sempre!
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