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domingo, 9 de fevereiro de 2014

A Princesa Morta


 
Jardim do Palácio da Pena - Sintra - Portugal

Amei tudo de uma só vez, sufraguei tudo de uma assentada, fui camponesa e princesa, serva e senhora de um só reino de Portugal, o meu, que vivi escassa e fugazmente, contigo meu amado, meu rei e meu príncipe Dom Luís Filipe, até...à eternidade!

O meu nome: Rosa. Rosa de Portugal!
O dia amanheceu ténue em brisa leve mas pronunciando o almejo quente de mais um dia de Verão. Eu banhava-me nas águas cálidas do lago que fazia fronteira e limites com o palácio dos reis em Sintra.Às vezes imaginava-me a soerguer uma taça de vinho ou simples água do riacho em comemoração de algum evento ou festividade no palácio - em que eu era a rainha, a princesa - e tudo o resto, eram os meus súbditos, o meu séquito de criados e demais bajuladores e servidores que sempre existem nestas ocasiões em pedidos e avenças reais se acometem. E eu estava no meio sentada, em trono dourado, ouvindo e observando as gentes do meu povo, os nobres senhores de outras casas reais europeias e mesmo de outros povos, outros países, outros limites que não os do meu reino. E eu sorria, sorria sempre...para todos. Era amada, muito amada pelo meu povo e...pelo meu príncipe, ainda não rei por trono e posse de seu pai Dom Carlos.

Chamo-me Rosa de Portugal. Sou uma simples lavadeira dos aposentos e desmandos da criadagem do palácio que se me julga superior, só porque faz parte integrante dos serviços do reino. A família real está no palácio em veraneio de férias e lazer e requereu os meus serviços e eu aceitei, pois sempre é mais uma prestação a que a minha gente lá de casa não fique sem janta por uns dias. No povoado até já me chamam de «princesa» por certas invejas e obséquios meus de me terem dado este serviço real, a mim, uma pobre camponesa que do seu único vício e préstimo, se faz banhar nas águas gélidas dos jardins do palácio sem que ninguém o suspeite. Adoro sentir a água fresca e límpida por mim, em fragrâncias múltiplas de odores infinitos. O que escrevo agora em letrada exímia de um português que finalmente soube falar, escrever e pronunciar foi-me dado em registo de lição e aprumo pelo meu príncipe, mas isso são «contas de um rosário» que mais tarde contarei. Por ora, sou analfabeta. Não sei ler uma letra, mas sei contar e somar e dividir pelo que me foi ensinado por um avô marujo que andou pelo mundo e tal me ensinou. E bons préstimos me dá, pelas couves e pelos nabos que vou vender na feira sem que me roubem ou troquem as poucas moedas que me sobram. Não sou burra, mas sei o meu lugar. E sei que posso sonhar com o que quiser pois dizem que sou bonita, que até poderia ser princesa pelos meus olhos azuis e boca carmesim e pele alva e corpo prazenteiro, mas o meu coração é de alguém que nem ele nem eu ainda o sabemos; ainda...até àquela manhã, àquela leda e fresca manhã de Verão em Sintra.

O Príncipe: Dom Luís Filipe
Fiquei assustada. Ouvi um resfolegar em cascos prenhes de enseada e musgo batido do que não supunha ter em circunstância alguma, aquele meu rei e meu príncipe ainda, sob a vegetação cerrada de um lago quase desconhecido por todos. E ele mirou-me. E ele, muito quedo e aflito, supus, em hoste de timidez e afronta do que via na sua frente - eu, desnuda e singela tal como vim ao mundo - e ele sem saber o que fazer, tentando recuar, tentando fugir e voltar, tentando negar-se à minha visão de «ninfa» como o descrito nos sonetos de Camões das sereias e das deusas do mar - que só mais tarde mo revelaria, sem que eu soubesse de tais proezas, de tais poemas, ainda que já tivesse ouvido falar desse poeta por mão de honrarias a um nosso Rei Dom Sebastião que pelos mouros lá ficou... - e eu, muda, quieta sem saber também o que fazer.
Até que ele me deu o seu manto para me tapar e nada ver. E eu aceitei. Até pela razão de as minhas parcas roupas, cerzidas mas não rotas ou sujas, estivessem pelo chão e bem mais longe do que aquele manto de veludo azul, cor da bandeira, cor do seu brasão e da nossa terra, nossa nação lusitana.

Os dias, as noites, as manhãs, as tardes e a todo o momento ele, meu príncipe e rei do meu coração estaria para sempre em mim, no meu corpo e...na minha alma! Ele, meu Santo Jesus Cristo, por tudo o que me é mais sagrado, é o homem mais bonito que eu já vira em toda a minha pouca vida em existência e, sentimentos. Alto, alvo e alourado de cabelos suaves e perfumados; de olhos felizes e verdes, de um verde brilhante que mais parecem duas azeitonas, olhando para mim, interrogando-me os meus, desejando mergulhar em mim como quando vai com o seu pai em pretensos marítimos, disse-mo um dia ao vigiar-me a placitude e harmonia de mim. E eu acreditei. Deixei-o navegar em mim, deixei-o perder-se em mim, deixei tudo por tudo lhe querer assim. E, foi dos mais belos momentos havidos. Amei e deixei-me amar, a mim, Rosa de Portugal que em nome, em princípios e berço só tinha os que meus pais me deram na roupa que tinha vestido (quase a única...) e a alegria desse nome em rosa aberta, rosa do campo em alegoria imensa de uma riqueza ímpar, tão diferente da do meu senhor que cheirava a jasmim, a alfazema, a perfumes caros do Oriente (dizia-me ele em confidências) e eu, tão depauperada e singela desses aromas, dessas arrogâncias da corte, dizia-lhe que de tais não precisava apenas porque, os cheiros do campo são bem mais felizes e honestos do que esses que por vezes enchiam as senhoras da corte e suas amigas, arremeti-lhe, de brotoeja e comichão pelo corpo todo em borbulhagem vermelha e feia. E ele ria-se...o meu lindo príncipe que era só meu!

O Namoro Real
O tempo estival que tivemos foi-nos presenteado a correr, ao que vi e amolguei no meu coração. Se na primeira apanha de o ver lindo e altivo tinha sido em equestre passeio de montada e arreigo, agora fazia-se elevar no seu mais belo automóvel que eu nunca vira por perto de mim. Na minha aldeia só havia, burros, mulas e uma égua que pertencia ao senhor da vila próxima e que era portentoso em bens e valores e nem este tinha tamanha carroçaria sem cavalos adestros e de motor (disse-mo o meu príncipe) em soada forte e de cheiros estranhos de óleos queimados ou coisa parecida. E andava tanto, meu Jesus! As árvores passavam umas atrás das outras e o vento dava-me na cara e eu tive medo. Depois, ele, o meu príncipe, mandou puxar a capota do automóvel (que eu pensei só haver nas caleches e carruagens reais) e afagou-me com o seu casaco real e, o seu sorriso que ainda hoje lembro no Céu etéreo. E ele dizia-me: Rosa, minha bela Rosa, minha bela flor que és minha, só minha! E eu sorria também, sentindo-lhe o cheiro de outras flores em si juntas ao meu corpo numa amálgama de pureza e liberdade que nunca houvera então.
Levou-me ao palácio da Pena, residência oficial de férias e veraneio dos seus pais e reis, senhor Dom Carlos e sua esposa e mãe deste, senhora e rainha Dona Amélia, francesa de seu nascimento. E, talvez por essa razão, me chamasse tantas vezes de: "Ma Cherie..." e eu sorria de novo. Gostava de o ouvir chamar-me assim nu ronronar seu de príncipe consorte que me era ali. Os pais, meus reis e senhores também, estando fora do palácio em ida a Lisboa por anúncio de algo particular, afiançou-me, este estaria livre (o palácio) para mim como se rainha eu fosse. Primeiro recusei e depois aquiesci. Maravilhei-me com tamanha riqueza, ostentação e brilho de móveis, tapetes e entradas e...jardins, e cobertas, e...tantas outras coisas que quase morri de pasmo. Mas não morri, antes vivi o meu sonho tão sonhado, tão desejado de ter o meu príncipe em meus braços nesse dia e...nessa noite seguintes. E foi o último sonho que vivi!

A Partida dos Reis
O Outono chegou e com ele, a minha tristeza de me ver apartada do meu belo príncipe. Ele, que me ensinou a ler, a escrever, a pintar e, a enaltecer todas as artes, todas as maravilhosas e ignoradas por mim até aí, das poderosas e sentidas palavras que após o Verão, ele me escrevia em cartas lacradas e que de todo o povoado em redor se me acercavam, só para ver a sua distinta assinatura real mesmo que de nada percebessem. E eu fugia para os prados, fugia para os montes, para as enseadas só para a ler em secreta mensagem do meu príncipe para mim. Agora eu era importante na aldeia e, em todo o povoado...só por estas honrarias escritas do meu lindo e real príncipe que me não esquecera. Dizia-me do seu incomensurável e desgostoso amor por mim e que, me iria mandar buscar um dia desses, só para ele, para os seus braços, para a sua casa, para o seu mundo...e eu, acreditei. E...esperava. E...desesperava.
Passou o Natal que ele porventura, teria passado recheado de tudo em iguarias e presentes vindos dos vários pontos do mundo e eu...apenas de rosmaninho sobre a mesa e, sobre a porta esburacada da minha pobre e humilde casa, esperando nova missiva sua, nova mensagem de busca e recolha da minha pessoa. E rezava, rezava muito para que ele me viesse buscar. Mas não veio.
Dizia que ia em Janeiro do próximo ano em caçadas havidas e prometidas a seus pais, lá para os lados de Vila Viçosa onde possuíam palácio e quintas, arrumos e afluências de uns e de outros por questões obrigacionistas e de boa ordem para com os seus concidadãos e demais populaça geral de políticos e outras avenças, pois que a monarquia andava um pouco desamparada e, arredada dos bens prioritários do seu povo. E não era mentira. Havia contestação e rumorejar nas ruas de Lisboa, diziam-me os mais eruditos das tavernas daqui, em que se sublevavam e revoltavam com os ditames de muitos gastos desta «imbecil» monarquia obsoleta e inútil. Temi. Pelo meu príncipe e, pelo meu futuro. Já não queria ser princesa, só queria o meu príncipe como homem, simples homem para mim...para, voltar para mim!

A Morte
Mas não voltou!...Quase morri de desgosto. Tinha-me dito por carta que voltaria em Fevereiro para Lisboa e que, me iria visitar e quiçá buscar (ou mandar buscar) a Sintra. E eu esperei. Jesus, como esperei! E dele, nada. Nada mais que não fosse, a frialdade das manhãs, sem a minha linda estrela da manhã, da tarde e...da noite que tantas vezes me aqueceu e, me antecedeu depois a angústia de o não ver voltar. Até me gelar; o peito, as mãos e...o coração. Naquela triste e horrenda manhã de Fevereiro em que os rebeldes se manifestaram no Terreiro do Paço sem que deixassem os reis assumir depois ao palácio das Necessidades onde habitavam em permanência de sua estada em Lisboa. Não chegariam lá. A Rainha Dona Amélia ainda se interpôs ante os malfeitores e assassinos do meu rei e senhor Dom Carlos e, do seu filho e meu príncipe encantado Dom Luís Filipe. Mas tarde demais, pois que ramos de flores nunca poderiam amortecer a queda, as balas e, a morte iminente destes meus dois senhores de país de brandos costumes, agora em guerra e revolta prostrados. E eu, sem nada saber...que, a muito custo, só dias depois o soube pelo aglomerar no pelourinho da aldeia em suplício e tristeza cumuladas de todo um torpor hediondo e, quase mortal em mim. O meu senhor e Rei Dom Carlos, morto. O seu filho e meu príncipe Dom Luís Filipe, morto também e eu...morta fiquei. Por dentro! E por fora, e por toda a minha seca e desertificada pessoa que já nem alma sentia em mim. Eu...que esperando um filho seu, me anunciava morta querendo morrer consigo.

Julho de 1908
Encontrei-te meu amor! Estiveste tanto tempo arredado de mim...que já mal te conseguia recordar. Mas agora vieste buscar-me. agora...estás comigo! Lamento tanto...ou talvez não, que não possas ter visto o teu filho, o filho que me concebeste naquele Verão de 1907, o Verão mais belo da minha vida. Ainda não passou um ano e já - estando juntos - eu daqui, do Céu eterno te possa dizer o quanto te amo e estarás para sempre entre nós - eu, no Céu do teu lado, e o nosso filho na terra em quebranto de órfão mas feliz de nascença em cargos de meus pais e seus avós que deixei lá na terra em cuidados e educação.
Morri de parto numa bela manhã de Julho com a tua imagem do meu lado e, a da visão enublada de nosso filho recém-nascido que, para além futuro e além vida, terá de renunciar a qualquer título nobiliárquico ou de nobreza correspondente. Será um servo, um mero criado ou serviçal nos campos ou nas redondezas onde foi concebido e tão desejado, mas nunca saberá da sua proveniência e origem pela obediência máxima e sua própria protecção, pois que os tempos na terra e de nosso país não são os melhores.
Olha...como está crescido! Tem o teu sorriso meu amor...o nosso belo e lindo filho na terra. Já percorre os campos, as enseadas e, observa como maneja tão bem a espada de madeira que lhe deram para as suas brincadeiras infantis. Possui o teu semblante real e a magnitude do teu porte altivo como brasão descendente de corpo, sangue e alma que lhe é pertença e por direito do que lhe concebemos, tu e eu, meu príncipe.
Nunca ninguém suspeitará. Nunca ninguém saberá ou reconhecerá nele, o herdeiro-mor, o herdeiro real de tua e minha descendências em berço único de estopa e colmo, como um dia certo «príncipe» da Judeia...
Vem meu príncipe...é chegada a hora de partirmos. O nosso filho fica bem. Terá uma boa vida, nada lhe faltará de braços para trabalhar, uma mulher para amar e, uma família por ramificar. Será um simples e bom homem da sua aldeia, a minha aldeia, mas será recordado sempre...pela sua beleza, humildade e solicitude ante os mais pobres, os mais fracos e, os mais necessitados. Podemos estar orgulhosos meu príncipe...

Em início de Fevereiro no Terreiro do Paço em Lisboa dar-se-ia a morte do Rei Dom Carlos e do príncipe primogénito do rei, o Príncipe Dom Luís Filipe. Morreriam ambos, alvos da revolta dos republicanos em arremesso e sublevação pelo fim de uma monarquia que desejavam extinta. Assim foi, efectivamente. Mesmo que, soçobrando esta na pessoa do príncipe e depois anunciado Rei Dom Manuel - que após a instituída República a 5 de Outubro de 1910 - se exilaria com a sua mãe, a Rainha Dona Amélia, partindo da Ericeira para outra corte europeia.
De Rosa de Portugal mais ninguém ouviu falar, nem sequer nos subúrbios de Sintra ou sequer tugúrios de tavernas ou ruelas esconsas de uma Lisboa tão cosmopolita quanto intrigante em lendas, mitos ou...verdadeiras histórias ainda por contar. Desta, só a beleza de seus mágicos olhos azuis e pele branca, tão branca como a neve, ao que um dia esse seu príncipe lhe asseveraria em doçura extrema de toda a sua delicada figura e personagem distintas. Com o apelido mais belo que alguma vez se poderia almejar em mera camponesa de paixão e assomos eternos, Portugal não se extinguiria nem em nome, nem em poesia do que os seus jardins, os seus monumentos e, as suas belezas intemporais se edificam. Rosa de Portugal, nos canteiros das romarias, nos vasos das cantarias e ruelas de Sintra, ainda hoje se sente o cheiro e aroma da Natureza em laços unidos de um seu príncipe e, de uma sua bela «princesa morta». Mas que, viva está em memória e presença nos contos e cantares das suas gentes.
                                                                                      - Em homenagem a Rosa de Portugal -

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