Há almas eternas, outras imortais e talvez até mesmo outras confortavelmente emanentes sobre o Universo; cabe-nos a nós descobrir quais as que nós somos, por outras que andam por aí...
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sexta-feira, 8 de agosto de 2014
A Idade dos Sonhos
Pátio das Margaridas - Castelo de Óbidos Portugal
Haverá mesmo uma «Idade dos Sonhos» em que nos perdemos ocasionalmente em delírios fugazes de amores eternos e para sempre vividos, na inconsciência dos dias e, da efemeridade de toda uma juventude? Haverá espaço para a cruel realidade do que a vida em futuro próximo nos mostra, dessa tão doce e ténue passagem do tempo que julgamos inextinguível e, quem sabe, inexpugnável sobre nós?
Verão de 1980
A Alma de Óbidos
A coisa tinha começado bem. O tempo estava bom - o que era inédito para aquela terrível zona Oeste do país, sempre com uma humidade assente e, umas quantas nuvens que pareciam fazer estandarte a cada Verão que passava, em litoral-oeste sempre tão igual a si. Tendo como abraço apertado, Peniche, e do outro, a cidade das Caldas da Rainha, Óbidos sente-se num enclave de filho único entre um pai temeroso e nunca presente e, uma mãe já mais dócil mas talvez impotente, para a grandiosidade do filho que obstina por perto. Eu sei que parece uma metáfora estranha esta, comparar Óbidos a um filho solitário, acabrunhado nos seus pensamentos, evadido nas suas obras e acções, mas o certo é que sempre tive essa mesma noção, desta bela e exemplar medieval Vila de Óbidos, ser de facto muito especial...para mim e, para todos quantos a visitam e, nutrem este mesmo poder de interrogação, sedução e por fim rendição a si.
Óbidos é única! É mãe, é mulher, é moça atrevida, é...Vila a absorver, a abraçar e...existencialmente a amar! Amar muito como eu a amei...como eu ainda a amo! Incondicionalmente!
A Vila de Óbidos exulta tanta História quanto contos e lendas, mistérios e segredos de lágrimas, degredo e outros tantos sentimentos havidos de princesas lastimosas por outras mais airosas que seus reis lhes confinaram em consagração e doação. Como o terá feito o meu rei português Dom Dinis a sua esposa e rainha Dona Isabel (Rainha Santa Isabel, a do Milagre das Rosas...). Conquistada aos Mouros em 1148, veria assim crescer um púlpito de igrejas fabulosas e outros tantos recantos extraordinários que vão desde o Castelo que guarda a Vila, até às igrejas de Santa Maria, da Misericórdia, do Carmo e de São Pedro, pelourinho e capelas de São Martinho e Santo Antão; a imponente igreja que dá as despedidas a Óbidos na do Senhor da Pedra e a Quinta das Janelas. Será infâmia não lembrar a Lagoa de Óbidos, da qual se sente uma leve brisa em maresia de mar adentro que a esventra, que a percorre e...que a ama igualmente em seu seio de algas e moluscos numa atmosfera única que não deixa nada a dever a umas brumas de Avalon, aquando o Inverno chega...? O seu mistério é igual, semelhante no oculto e na esfera esotérica de uns quantos recantos que nos assusta e refrega o pensamento de um dia, estes terem em si guardados mais segredos do que os nossos em almas viventes.
Como é lindo o amor em Portugal...! E em Óbidos, tudo se torna ainda mais efusivo, clamoroso, fantástico! As vozes nocturnas de sons e gemidos por entre as ruelas estreitas em aroma floral que não nos deixam sufragar ou, redimir essa ansiedade de tudo se viver, faz com que os sentimentos se exortem da tal forma que nada se pode parar nesse ímpeto de amor imenso. Comigo...não foi diferente. Vivi-o. Senti-o. Amei-o na plenitude dos meus actos, da minha pele e de todos os meus sentidos. Desde as tavernas às capelinhas, das pedras da calçada portuguesa (que me esfarrapavam os saltos-agulha dos sapatos caríssimos!) e me desequilibravam sem ser por vias daquele estonteante e dulcífluo «toupeiro» (bebida doce que é tomada muito fresca e com uma azeitona enfiada num palito em copo redondo) e, na postura que se não deseja, me ver embriagada sim, mas desse tão intenso e louco amor que ainda hoje recordo! Na Idade dos Sonhos...tudo é possível! Na Idade dos Sonhos...tudo nos é permitido e eu...bem, eu não fui excepção!
A Paixão
O Verão quente de 1975 há muito que arrefecera no meu país. Graças a Deus! Tudo voltava à normalidade como Deus queria. Os bancos nacionalizados, um facto indesmentível mas, ainda assim, com uma certa ordem que lentamente se ia instaurando no meu pobre e pequeno país, à beira mar plantado.
Os ecos que vinham do outro lado do Atlântico, em toada de eleições a cumprir, denunciavam-nos novos tempos em corrida presidencial norte-americana entre um certo Ronaldo Reagan - Republicano ( e que já tinha sido actor) - e Jimmy Carter - o Democrata. Tudo nos conformes. Isto é, se não nos susceptibilizássemos com as notícias vindas a público dos quinhentos mortos no Líbano, a 7 de Julho, em que vinte comissariados do partido Nacional Liberal foram tomados de assalto pelos falangistas Béchir Gémayel no que teve a seguinte consequência. Depois, o assassinato em Paris do ex-Primeiro Ministro Sírio Salah Eddin Bitar, fundador do Partido Nacional Baas. Um golpe de Estado na Bolívia, um atentado terrorista na estação de Bolonha em Itália - causando oitenta e três mortos e mais de duzentos feridos - um avião que se despenhara em Riade, na Arábia Saudita e no Chile, cinquenta mil pessoas (já no fim do mês de Agosto) a desfilarem em manifestação de protesto contra a Junta Militar de Augusto Pinochet. Como dá para perceber...eram tempos difíceis...no mundo inteiro! E eu...que sabia eu disso?...Que queria eu saber disso, quando se tem aquela idade em que tudo nos parece belo e flutua à nossa volta em crisântemos e libelinhas esvoaçantes sem nada que nos apoquente, sem nada que nos restringe esse fluxo maravilhoso de se ser feliz? De...se querer ser feliz, à viva força...e nada nos entorpece ou detém nessa viva força?
Eu amava. Pela primeira vez na minha vida (penso que os namoros da infantil e da primária pouco terão contado...) e eu sentia-me a deixar o casulo da imaturidade, da inconstância e...da inocuidade sentida até aí de amores furtivos, amores estivais, amores que o não eram na sua total incidência e, objectividade de sentimentos puros, sentimentos havidos. Agora era diferente. Eu amava como uma mulher ama um homem e gostava disso. Pela primeira vez, soube o verdadeiro sentido da paixão, da ansiedade louca que nos aperta no peito e nos grita inconfidências de angústias e fraquezas, por estarmos tão inseguras e tão carentes sem saber se aquela pessoa que escolhemos, que está connosco...nos ama de igual forma e correria atá à China, circundando a sua Grande Muralha só para nos salvar ou...se, simplesmente, no seu automóvel que já teve melhores dias (em chapa batida e cor carcomida...) nos vir buscar, nos vir alcançar para a noite mais longa e bela das nossas vidas! Era assim que eu me sentia.
E ele...o meu príncipe era lindo. E tal como disse de início - em Céu sem nuvens e atmosfera deliciosa de temperatura e aroma - assim me vi ser içada, adorada, encantada e...amada pelo meu belo príncipe de olhos verdes que cheirava a alfazema e tinha o sorriso mais lindo do mundo! Do meu mundo! Era tão menino e eu...tão sem jeito assim, sorria para ele, dançava com ele - na discoteca da moda, chamada «Green Hill», vulgo «Granel» - na Foz do Arelho - em que a música se misturava com a maresia vinda da Foz e da Lagoa, juntas, em abraço uno e forte de amantes que também eram. Ouvíamos o Enola Gay em batida esfuziante que nos punha aos pulos - na inocência adquirida naqueles tempos - sem grandes recursos havermos de estudos ou maior consciência que nos ditassem essa mesma incongruência de festejarmos a vida, baseada numa canção que exalava morte em bombardeio da Segunda Grande Guerra em várias vertentes, e desta, sobre o Japão em cidades-mártires de Hiroshima e Nagasaki! E nós...dançávamos. Celebrávamos a vida, a emoção, a juventude e...o nosso tão grande amor. E nada mais importava!
O Fim
Fui para Londres. Deixei-o. Era mais premente aquela viagem de passeio e lúdica loucura com uma amiga do que ter ficado. Era a primeira vez que os meus pais me deixaram viajar sozinha. Naquele tempo as raparigas, as mulheres no seu todo, ainda não tinham a total liberdade dos seus actos - ainda que já tivessem muitas delas atingindo a maioridade que se estabelecia agora aos dezoito anos de idade. Comigo, não era diferente e, por mais que a saudade batesse no meu coração e continuasse a ouvir o seu outro - sobre o meu peito - desembainhada por uma espada de liberdade agora havida, aquela suave e doce balada, persistiria no meu coração. Canção essa que, enevoada de amor e perdição de um Peter Frampton, me fazia colidir igualmente, entre o que teria de prosseguir ou...apenas parar e, pensar, reflectir e instaurar em mim a certeza do que desejava ou queria para o meu futuro. Ter de continua com a minha vida - que era efectivamente distante - «e tão longínqua» como o afirma o cantor português Rui Veloso na sua nostálgica canção: E eu...que vim de tão longe só para te ver...mesmo do outro lado da rua! De facto, não era do outro lado da rua mas...era igual; era de um outro lugar mas não tão distante assim que me levasse a apartar de si, sem ser por imposta condição própria de o não querer ver mais. Optar por algo diferente, optar...sempre optar, e isso por mais que nos distinga de seres humanos que somos em espécie de livre arbítrio, acaba sempre por nos condenar da pior maneira possível: o abandono, a submissão a algo que não queremos mas não podemos fugir, a algo que já nos foi destinado e nós...e que simplesmente, temos de o fazer cumprir. Nada mais! E foi o que aconteceu. O Fim!
Óbidos do meu coração - onde vivi os melhores momentos da minha vida, acabaram inevitavelmente por me espetarem a mais cruel lança de que há memória: o ver-me rejeitada por mim própria! Não fui corajosa. Não fui aquela que por tudo e por um só sentimento, luta, batalha, corre, investe, persegue ou...alcança os seus objectivos emocionais e de anuência futura...não! Fui a que se acobardou, a que se mitigou e mesmo regrediu na mera condição de se deixar envolver noutros valores e pagou por isso.
Vivi a solidão, a amargura de ter errado, a solicitude nefasta de ter imprimido em mim, aquela mesma dor penetrante e, inexorável, de me fazer sentir a pior rameira de todas. Tinha vendido a minha alma!
Nunca mais o vi. Nunca mais ouvi Peter Frampton! Nunca mais senti aquele abraço, aquele beijo e...aquele seu aroma a alfazema que ainda hoje recordo em misticidade e exótica fragrância do seu corpo em enleio de alma e, sobre as ruelas de Óbidos, em que ele me confessava amar-me para sempre. O meu corpo no dele, e ele em mim, é tudo o que a minha vã lembrança sustém desses tempos e...quando ele me pegava nos cabelos negros e longos que eu tinha na época - do tipo Apache - ( e que depois decepei e moldei em estranhas madeixas douradas, dando-me o perfil de musa encenada para si...) mas, que ele idolatrava, cheirando-os, perdendo-se neles, perdendo-se em mim. E eu...deixava. Era como se ambos estivéssemos numa longa e farta floresta ou bosque encantado em que ninguém entra nem sai...só nós... lá estamos. Até hoje! Como um elíptico labirinto em cosmos petrificado, estamos assim...eu e ele sem dali sairmos...ainda que ele o não saiba, continua em mim! Para sempre! E Óbidos lá está...em imponência, em impetrável suspeição e cumplicidade de tudo o que vivêramos ambos aí, em toda a sua majestática insinuação de Castelo, de História Medieval, de história minha! Só... minha! E choro como Inês de Castro chorou nas suas ruelas, a morte de um dos seus filhos (mal sabia ela que todos nós mais tarde, por ela choraríamos também...) e por Isabel, a rainha Santa pelos deslizes conjugais (muitos!) do seu infiel esposo, Senhor e Rei Dom Dinis e choro...pelos meus desmandos de não ter sido mais aguerrida, mais veloz e mais coerente com o sentimento havido. E como o lamento agora...mas teria havido futuro? Teria havido...família? Teria havido esse mesmo e e eterno amor, se acaso me tivesse sido permitido vivê-lo...? Não o sei responder mas, sei, que ainda hoje guardo na lembrança...aquelas botas de lã amarela e branca (com um pintainho no cimo, finalizado num laço de cetim) que eu lhe mostrei um dia...em vias de uma família concretizar e ele mo recusar por não se achar digno nem haver vida própria...ainda! E eu...acatei. Triste, pesarosa, mortificada por dentro e por fora, pois que ambicionava com todas as minhas forças poder ser mãe, poder ser sua, poder ser tudo em si! E...não fui nada! Acabou tudo! Como o Sol que nasce no outro dia...em Óbidos ou noutro sítio qualquer, eu fui apenas uma mulher que amou...e que talvez por uma lágrima dele, eu morresse feliz como cita o tão proeminente fado da falecida senhora Dona Amália Rodrigues: "Por uma Lágrima tua...morreria eu, feliz!"
Não quero morrer e prefiro citar, hoje, a minha poetisa (e talvez... profetisa) de eleição: Florbela Espanca no seu soneto, "Esquecimento" - Diz ela no seu final:
"E desse que era meu já me não lembro...
Ah! a doce agonia de esquecer
A lembrar doidamente o que esquecemos!..."
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