Há almas eternas, outras imortais e talvez até mesmo outras confortavelmente emanentes sobre o Universo; cabe-nos a nós descobrir quais as que nós somos, por outras que andam por aí...
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sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016
A Experiência IV: A Reactivação!
Em busca da nave perdida... em busca da esperança de vida... fora de Marte!
(«Não é um adeus, é antes um até já...») disseste-me com os olhos calados, absorvidos na imensidão do que tinhas de fazer, do que tinhas de alcançar. Naveguei por eles, perdi-me neles, nesses teus tão belos e translúcidos olhos que nunca me mentiram, que nunca me sonegaram nada que não fosse a verdade. Como um murro no estômago e uma vontade perdida de te gritar que ficasses, amordacei a louca ansiedade de te dizer que te amava (será que compreendes isso...?) e verguei-me ante a necessidade urgente, premente de todas as coisas, para que voltasses para o módulo, para que voltasses para mim.
Já não sei viver sem ti, nem tal me seria concebido na sobrevivência que não sei aqui manter. Mas, tal como na Terra que já quase não lembro, Marte é o meu fosso, mas também a fresta por onde a minha alma se escapa, vindo de encontro à tua (será que tens alma...?) e eu me escondo de um mundo que não conheço mas admiro já, se tu eu, Blue, formos unos, na beatitude estelar de um desejo maior, de um sentimento maior, que nos perpetue este laço que aqui tecemos.
26 de Fevereiro de 2016
Há uma semana que espero por ti. Há uma semana que o tempo e o espaço se finaram numa desesperança que não sei acolher, que não sei entender. Não sei onde começa um e acaba outro, pelo que me deixaste em vazio e vácuo de todos as alegrias, de todas as temperanças. Não sei estar só, não quero estar só. Temo mais por ti do que por mim, mas isso agora pouco importa, se tu e eu, tal como neutrões isolados, estamos à beira da desintegração, da falta de espaço no Espaço e, no pior dos males (ou dos cenários), na mais liminar instabilidade que nenhuma anti-gravidade poderá aproximar.
Não fosse a pequena luz (azul e branca) que recrudesce em mim como caule enrubescido na madrugada terrestre, e eu, há muito que estaria destroçada a soldo de uma voz maior, de um poder maior - não-terreno e imaterial - que num abraço vegetal me tomaria, me violaria, como sua pertença, como sua concubina para todo o sempre. E depois morreria, esperando por ti... esperando sempre, mas sempre, por ti... (e tu, Blue, virias...?) Por favor, diz que sim... ou morrerei em agonia e pranto, com o teu filho nos braços (aquele que aqui concebemos) mas do qual ainda não sabes da existência.
Voltarás para nós....? Voltarás para mim, para os meus braços...? Ouvir-me-às na longitude destes sentidos gritados, agrilhoados de todas as vontades só para te terem aqui? Sentir-me-às ainda...?
Uma breve missiva que não lerás...
Nada ficou como dantes; nem podia. Ambos sabemos disso. Os Kappa trouxeram-nos aquela outra realidade que ambos andámos a fingir não existir ou que tentámos distanciar de nós na perigosa assistência volumosa de um Cosmos prenhe de maldade e concupiscência estelar que tudo absorve, consome e destrói; mesmo para além das tais regras e leis galácticas - e universais - que o Grande Uno impera, havendo sempre quem prevarica, quem delinquentemente infringe tal. Até sobre Marte, este seco e árido planeta que nada tem e que ninguém quer; a não ser os próprios que aqui habitam nas cavernosas profundezas em réstia de sobrevivência planetária; e isto, numa teimosia feroz que os leva a submeter à mais caprichosa atmosfera de nocividade imposta. Mesmo quando um berço nos rejeita ou nos não abarca por tão volátil ter sido em extensa cremação, não deixa de continuar a ser nosso, mesmo que para este (teimosamente!) continuamos a querer voltar, sem que nada ele nos possa oferecer. Não será assim connosco também...? Não é por essa mesma razão que, ambos, ainda acreditamos para os nossos berços voltar, tu, Blue, para o teu planeta KIC qualquer coisa e eu, para a minha amada Terra...? Mas sem ti, Blue, querê-lo-ei...? Ou levar-me-às contigo, nos teus lânguidos e azuis braços fortes que tudo amparam, que tudo seguram de mim e do meu já extinto mundo...?! Poderei contar contigo, ou foi tudo pura e mera ilusão perdida tão nefanda e maldita como os murmúrios dos augúrios por onde andámos, aqui, em Marte...? Voltarás para mim, meu amor azul...? Amar-me -ás como eu a ti...? Não precisas responder; só voltar para mim...
«Reagir, Reactivar e Reassumir»!
Estas, as três palavras que vi espelhadas no teu rosto em expressão cirúrgica de tudo o que me dizias ser crucial, ser exacto e, imperiosamente indissociável, da nossa futura sobrevivência: o ires em busca de uma oportunidade, de uma loquaz mas ainda assim resquícia nesga de esperança e avença tecnológica de daqui sairmos: a única nave disponível, acessível e Deus queira, transponível de nos fazer guiar ou direccionar para outro planeta, para outra possível estadia vital que albergue ambos (além o mister-T que connosco sempre anda e já de nós se não aparta como cão pisteiro de alto comando policial). Somos uma tríade estranha. Mas somos. Acreditar nisso é imperativo!
Os Kappa, tendo sido derrotados (e quase todos extintos) uns fugiram, outros morreram. E essas mortes pesam-me tanto como pedras sepulcrais no peito, pelo que já me desfiz de culpas mas ainda não do pecado maior testamentário que um dia Deus deu a Abraão dizendo: «Não matarás!» Mas isso era dentro de portas (na Terra); fora dela, as coisas são bem mais complicadas. E se Deus não estivesse comigo, não me daria o beneplácito dessa honra e desta nossa suposta sobrevivência em nave estelar adormecida - mas não morta - sobre os solos marcianos.
O Cérebro detectou a 200 quilómetros de distância da base alienígena onde nos encontramos, quatro naves dos Kappa que, destruídas e desconsideradas de voltarem a mover-se, se enterraram nas areias pedregosas vermelhas, ferruginosas, de Marte. Menos uma. Uma delas pode ser viável de locomoção e reactivação, segundo nos asseverou o Cérebro. Será esta, então, a nossa única possibilidade de daqui sairmos, mas para isso, Blue, o meu Blue, teve de dar o corpo às balas, que é como quem diz, teve de assumir ou reassumir comandos, decisão e investidura sobre si, numa altruísta atitude sua de até lá ir e poder trazer a nave até nós, até aqui. Mas para isso, eu teria de esperar. Como agora espero: tudo e nada. E do nada se faz tudo, eu sei, mas esse tudo invade-me a alma como lianas serpenteantes que me asfixiam o crer e, a bonança de sentir que ainda há esperança, que ainda há vida... fora de Marte! «É por isso que espero por ti, meu amor azul...»
Antipartículas que todos somos...
Matéria versus Antimatéria: o que hoje sinto, encriptando (ou teorizando) sobre o que me define ou o que eu vejo e solto de mim como versão mágica num espelho que me retribui algo que já não conheço - na mulher que fui outrora e hoje sou. A minha congénere (antimatéria) - idêntica e com a mesma massa de rotação - é a minha similar alma gémea mas que eu ainda tenho dificuldade em compreender. Se me dissessem, na Terra, o que mais tarde se aventaria sobre mim e sob terras de Marte, eu diria que uma alucinógena substância activa teria atingido todos nessa abstrusa conformidade (ou deformidade mental na destruição de enzimas específicos, ou de axónios neuronais por efeitos de psicotrópicos ou outros...) numa evasão de mentes alucinadas sobre destinos incertos. «Porque teimo eu em dilacerar ainda mais estes meus neurónios de ADN terrestre em acção excitatória ou inibitória de uma contradição anímica sem poder e sem vontade, pois que sem ti, meu querido e exótico Blue, eu nada sou»? Quem me compreenderá agora? Quem me escutará agora...?
Espero e desespero. Temo por Blue e por toda a corrosiva circunstância dele sobre Marte e sobre o que irá encontrar (ou já encontrou) e não me pode solicitar. Mas também, de me ver em solidão e desmame de algo que ainda não sei muito bem do quê ou porquê; assim como uma espécie de adição ou dependência que, inescrutavelmente, nos traz ânsias e morte. Ou vida. Só Deus o sabe, só Deus - o meu Deus - mo pode fazer reivindicar. E ressuscitar. Para a vida. Esta mesma vida que evolui em mim, mais como estigma do que como normalidade efectiva, mas assim é.
O Princípio da Incerteza
Mais do que parte da teoria da Mecânica Quântica, é a total parcela de toda a minha alma, na similitude do que me confrange agora nesta espera tão louca quanto desistente de mim. E tal não posso; não devo e não quero. Tenho de acreditar: por mim, por Blue, e por este filho híbrido que comigo carrego como anomalia de indefectível essência ou massa maior de um neutrão vazio e, espoliado, que agora eu sou. A semelhança é inevitável; a subjectividade, uma certeza: carrego um positrão! E se a Física me dá ânimos de continuar pelo que me assisto por ver e, saber, o quanto um simples átomo pode transformar a nossa vida (como um raio-gama invisível semelhante a um qualquer espermatozóide) penetrante e dissolúvel numa qualquer câmara de bolha em colisão com o átomo que, julgo eu, será tão igual e tão intrinsecamente envolvente - tal como em ventre humano - ou fecundado óvulo feminino de expectante divisão celular que projecta uma vida, um simples electrão ou um simples ser que de simples não tem nada. Esta similar concepção apenas me reflecte ainda mais o que eu já sei há muito: é tudo energia, luz e matéria. É tudo vida! E essa vida sou eu que a exibo, agora! Ainda que possa surgir do nada marciano e tenha uma cor de mar na sua pele...
Todas as incertezas havidas estão comigo, partilham o meu leito agora frio e isento de fluidos e amor. Tudo junto. É como se todas as partículas do meu corpo se desintegrassem, se volatilizassem sem acordo ou reversibilidade de se juntarem de novo. Tal como a força nuclear fraca (que é transmitida através da troca de partículas, corpos ou sentidos, vá-se lá saber...?) no Universo, que tudo isso implementa em especial partícula W, como o despoletar de uma ignição, de uma explosão, ou de uma antítese que faz eclodir vida. Neste caso, refracta-a, reduz-la ou, simplesmente, refreia-a na simbólica condição de nada ser, antes ou depois desta ser concebida. Já nem sei o que digo. Por muito estudo, por muita eloquência que faça sobre as Leis da Física, sou eu que me debilito ante a enormidade do que me assiste. Estou só. E isso mata-me!
Estou a gerar algo que não sei como se irá desenvolver, que não sei como se irá dar cá fora: não em Marte, mas, na consciência de Blue que, apesar de me asseverar haver a noção de família mas de uma outra forma que não a da Terra, também não me dá a consistência plena do que irá confrontar, aquando se vir em descendência e, progénie, com um filho que não pediu para fabricar, possuir ou sequer abraçar. Que lhe direi quando chegar... se chegar...? Que pensará ele disto...?
Esta outra vida...
Estou grávida de quase dois meses (mais exactamente de 6 ou 7 semanas, já nem sei - o descontrolo é absoluto). E não sei o que fazer. É impressionante: estou mais fulminada que um circuito eléctrico queimado, um raio global electrizado sobre a Terra ou perenemente magnetizado por ondas que ainda se não conhecem no Universo.
Estou remetida ao silêncio das almas: àquelas almas que nos vêem mas nos não falam, talvez porque já lhes roubámos todos os recursos naturais dessa tão glorificante luminosidade de vigília e protecção. Não sei o que pensar de tudo isto. E nem sei como o dizer a Blue, ele, que tanto me tem resguardado dos males deste Cosmos maldito que nos assiste. Ou omnipotente, já não sei.
Queria ter ido com ele e revelar-lhe que não sou assim tão pouco esperta ou idiossincraticamente uma amiba estelar que consigo se arrasta por subsistir - ou sobreviver - numa resiliência anedótica e estúpida de me não saber fazer prevalecer em ser e criação. Mas não podia. De todo!
As semanas que se seguiram à invasão pelos Kappa, aqui, em Marte, foi de autêntico terror bacteriológico, em que nem eu nem Blue - e até mister-T - nos tivemos de envolver na ambiência fechada, hermética mesmo, desta capsular base alienígena. Os ventos cósmicos não deram tréguas, como se um deus menor nos pronunciasse um castigo de almas presentes em penúria e expiação na devassa que destas fizemos. Além o que o Blue teve de eliminar do perímetro da bolha magnética e do escudo protector da base em erradicação e, limpeza, sobre a atmosfera de Marte; e, sobre nós, em radiação ionizante que se fez estagnar sem desaparecer deste circuito planetário. Foi terrível!
Não quero que o Blue torne a adoecer nem que volte a passar por aquele catatónico estado esquisito que, os meus escassos conhecimentos de Medicina terrestre não podem salvar, caso volte ele a ficar enfermo. Como o poderia eu fazer...? (como o posso ainda fazer...?) com apenas um ano e meio de estudo e frequência em Universidade da Terra, como...? Não podia. E não posso. Por muito que o ame e dê a minha vida por si, tal não me é possível; lamentavelmente! E como me ressinto disso... (mas como podia eu permitir-me tal, sustentar dois filhos e uma quotidiana vida de esforços e cansaço, prosseguindo esses estudos, essas intenções de um dia ser médica...?)
Não pude e não consegui, falivelmente - e ainda hoje sofro por isso. Mas de que me serviria isso agora, se Blue está além, muito além de todos esses conhecimentos e práticas...?!
A exposição a produtos químicos ou a radiações ionizantes estão-me vedados (podendo criar mutações diversas no feto, danificando o ADN em formação). E, por muito que Blue esteja na ignorância deste meu gestante estado (por muito que telepaticamente nos compreendamos ou situamos na não-palavra dita mas sentida), ainda há vãos secretos, ignotos recantos ou tugúrios misteriosos que um e outro escondemos de nós.
E por esse facto tudo ele teve de assumir, sem haver necessidade de me ler os pensamentos, demitindo-me de me abeirar fora da base modular que nos sustenta, preservando-me a saúde, a condição débil e a gravidez que só eu sei sentir, que só eu sei existir em mim. Blue nem suspeita, mas fragiliza-se por me ver fraca e em mil pensamentos devastada, como furacão terrestre que tudo arrasa. E ele, sempre audaz, firme e pleno das suas convicções, das suas ambições e de um sentimento inescrutável em excelso poder estelar, faz-me nele confiar. E eu confio. A minha vida e a do nosso filho que não sei se será um monstro se será um deus... ou nada disso, apenas um filho e isso basta-me. Bastará para Blue...?
Não conheço a sua vida, mas sei que é branda, leve e coesa de empreendimento e segurança. Será que ao contrário ele me sente assim...? Penso que não, pois tão diferente e tão distante eu lhe sou como a Terra de KIC, além outros sóis, outras terras, outros planetas de outros sistemas solares. E ele aceitou-me como sou. De corpo e alma. Trocámos ambas e a partir daqui já não se pode voltar atrás. Mas eu sou-lhe inferior e ele sabe disso. Como poderá ele, Blue, ficar comigo assim...? Mas rezo para que não haja hierarquias de almas nem supremos poderes para quem tanto se ama assim... ou então, tudo será perdido e não rebatido, desactivado e, esbatido, e ele seguirá para KIC e eu, para o mais profundo e cáustico inferno terreno (ou marciano) em despojo de nada... do tanto que aqui se viveu...
O meu pensamento em multi-funcionalidade sináptica de neurotransmissores baralhados, confundidos neste tempo e neste espaço, faz-me sentir um monstro ancestral de uma qualquer mitologia, dentro ou fora da Terra. É como se houvessem a proliferar em mim, milhares de oncogenes na transformação celular de ideias, incoerências e sentimentos avulsos, tudo transformado em tumoral consternação que no meu peito mantenho. E, sobre o que Blue, de futuro (se houver futuro), poderá pensar de mim. Sinto-me frágil. E vulnerável a todas as coisas...
Meu amor azul volta para mim...
Os dias passam e a névoa tolda-me o espírito. Pensei amar um só homem do lençol à mortalha mas tal destino não me foi apaziguado nem concedido. Os meus filhos, os meus meninos, agora ténues lembranças doridas sobre o que o Cosmos me levou, sei que um dia com eles estarei; um dia que Deus me há-de explicar por que tal e sobre mim incestou. E essa conversa não vai ser nada fácil, admito-o. Nem calma. Nem omnisciente. Ou talvez seja, um monólogo, em que tentarei compreender das suas razões, dos seus motivos para de mim ter retirado o meu bem maior; ainda que agora tudo esteja revolto e reaceso (ou de novo reacendido) sem remanescentes de passados vividos ou sequer sentidos; e tal será possível? Não sei. Dói muito. Continua a doer. Quero os meus filhos de volta!!!
Sei que esperneei e clamei em vão os olímpicos sons das trompetas de Deus - ou deuses - por esses mundos fora e, aqui, ainda mais. Mas ninguém me ouviu. Pensava eu...
O Cérebro, essa torrencial máquina pensante indivisível, invisível e quiçá insubstituível, acabou por me fazer a vontade mas não na directriz exacta de voltar ao passado; antes, em descobrir um hipotético ou, sumariamente putativo futuro, de iguarias mil, de vicissitudes diferentes mas de igual repercussão novelística familiar, se acaso quisesse ou me fosse permitido acasalar com o corpo e a ideia de com Blue poder rumar ao seu planeta KIC. E, como bom e fiel Kicyriano que Blue é e continuará a ser, levar-me de bandeja a conhecer os seus. Que pensamento tão primitivo, Santo Deus... como se da terrinha eu viesse... e assim não é...? Penso que sim. E que constrangimento o meu, o verificar essa alegoria terrena...
O «Grande Neurónio» - o Cérebro - fez-me catalisar o que de melhor há em mim: a ingenuidade ou inocência de continuar a acreditar ser possível um futuro; e a dois, com Blue.
Ontem, foi o grande dia! Com o passar dos dias e a minha mente ocupada em desperdícios de instabilidade ou inconstância de me ver perdida para aqui, mesmo que mister-T se desenvolva em mil tropelias por me ver feliz, eu tentei (e só Deus sabe o quanto!) voltar a acreditar ou talvez readmitir, de que haja uma saída; de que haja salvação para todos os três, eu, Blue e mister-T.
O Cérebro, racional e preciso, mostrou-me que também tem alma. E sentimentos. Estranho, não é? Eu achei. Será o Cérebro mais do que à partida tem mostrado...? Ainda mais???
E de novo a luz... a da esperança!
Estou proibida de me aproximar da sala de comandos - do Centro de Comandos - centro navegável sobre todas as coisas vivas e não vivas do Universo. Não por palavras ou ordem expressa de Blue, que nada disse a esse respeito mas eu inferi ou deduzi, ante o que já sucedera anteriormente mas que, ao partir para a missão funesta na reconstrução ou reabilitação daquela infernal máquina dos Kappa, eu sabia ser de sentido proibido (e exclusivamente obrigatório!) do que eu nem saberia manejar ou sequer compreender. A última experiência mostrara-me isso. Acolhi.
Mas não resisti. Estou muito só, e tão só que, a parte cerebral, só me dá para fazer disparates, tal como criança endemoninhada pelo feitiço dos momentos juvenis ou de uma infância adquirida que sempre dá para o estouvamento ou quebranto após a malandrice feita. Fui mais longe e pedi, chorei e supliquei ao Cérebro que me voltasse a dar aquelas vãs memórias da família perdida que na Terra houvera. Não se comoveu. O silêncio foi total. Praguejei. De novo. Mas atolei-me em lágrimas e afoguei-me nessa tão grande dor de ver que nada me era facultado de novo. Engoli o próprio vómito do desespero e da inconformidade de saber que nada me seria, de novo, requisitado. Até que...
De novo, a luz. De novo, aquele som melódico e incontinente que flui num espaço longínquo como se este, agora, exíguo e compartimentado sustentáculo de suporte de vida (de habitat e permanência do Cérebro), não fosse mais do que a virtual janela aberta para o mundo de outros mundos, não só confinado àquele território da base. Foi como se o Cérebro despertasse em sensitiva e potencial urgência de me fazer entender que o meu mundo era - é, e existencialmente será - um outro mundo, ainda desconhecido por mim...
Mostrou-me outros planetas, outras galáxias, outros sistemas solares. E eu a tudo assisti como pacóvia que vem à cidade pela primeira vez; de novo! E de novo me deslumbrei, e de novo me rendi, tal como naquela primeira vez em que sucumbi àqueles tão transparentes olhos em chamamento interior de mim, em que Blue e eu fomos um só. E fizemos amor.
O Cérebro compreende-me, e eu agradeci-lhe por isso. Meu Deus (ouvi-me dizer) obrigado por ainda acreditares em mim...
KIC - o planeta de Blue
Se eu pensara que já vira tudo, na minha mais inata ignorância de comum cidadã terrestre que até há pouco eu tinha sido, agora o êxtase era (e é!) total, na benemerência dos astros e de toda a confluente e dispersa maravilhosa massa estelar que se abriu perante mim, perante a minha parca inteligência de meios e conhecimentos. Como burro a olhar para um palácio - boquiaberta e estupefacta - vi-me assimilar imagens que supus reais (ou irreais, em primeira mão...) de factos, vivências e extraordinários comportamentos de habitat, adaptação, ambiente e civilização que eu jamais imaginara poder existir.
Os Kicyrianos (ou de Kicyrius, como eu tentei traduzir ou descodificar, ante tantas siglas e números acoplados num sem fim de código binário associado), eram - e são, a acreditar no que o Cérebro me envidou - seres perfeitamente «normais» ou o que vulgarmente se poderá inflectir sobre nós, de seres muito idênticos aos terrestres (ou terráqueos - na sua inversa determinação terrena). De anatomia similar a Blue (uns mais escuros do que outros, em quase similaridade ao que na Terra se produz de etnias diferentes) também em KIC, se vê essa diferença que o não é, em diversidade e autenticidade. De morfologia erecta, humanóide (se é que posso usar este termo) em profusa identidade à de Blue. Há famílias. Há habitações/residências que não diferem muito das nossas, das terrestres. Há congressos (ou o que me pareceu ser assembleias de grande interioridade e, integridade). Há alegria, paz e harmonia; (Meu Deus, pensei, devo estar a ver o paraíso, algures por aí, em KIC, ou seja lá onde for...). Vi um mundo de criação, pacificação e bem-estar. Será possível existir tal, senti-me dizer no mais incrédulo do meu ser. Mas aquiesci. As provas eram evidentes. E fiquei mais descansada.
Não vi animais. Achei estranho, mas depois reconsiderei que talvez estes já estivessem numa outra plataforma, fosse lá qual fosse. Se era para sofrerem, mais valia não existirem (sei que pensei).
Os outros, os restantes ou afectos a si, ao Blue, já não me eram tão ostensivos de poderem ser aqueles monstros com que eu me deparava nos meus pesadelos sobre a sua terra e, sobre a sua gente... no que esperava não estar enganada. Não podia ser ilusão. Não pode ser ilusão! Tem de ser verdade, ou o Cérebro não mo relatava em paz de alma que tanto dilatei como doença coronária detestável - e sobre este lancei em perturbante intimação.
KIC 1110000111001011010 (ou o que pude à priori captar) são «gente» de bem. Após o que eu consegui explanar sobre esta tela de multimédia estelar que o Cérebro me incitou a ver (ontem só!) dando para compreender, numa perceptível correspondência distinta da minha realidade terrestre, de que há mundos mais perfeitos do que o nosso. De que há mundos tão ou mais belos de inteligência e, assistência, mais florescentes do que a minha amada Terra. E se isso para mim já era suficiente, não o foi, ali, ao ver quão díspare o meu pensamento estava do que iria então ver.
Muito semelhante a Antares (que é 850 vezes o diâmetro do Sol; 15 vezes mais massiva e 10.000 vezes mais brilhante!), sendo esta a estrela mais brilhante na constelação de Escorpião, é uma das mais brilhantes do meu Céu (Terra)! E como foi bom observá-lo ali...
Por muito que roçasse o tangível conhecimento astrofísico (do que parcamente adquirimos em estudo convencional na escola secundária, na Terra) nada se poderá assemelhar em incomensurável beleza e espaço de uma assentada só, deixando-me estarrecida mas no bom sentido. Como nano-grão de uma grande poeira cósmica, eu deixei-me levar pelo embargo anestesiado e, frenético, de todas aquelas imagens belíssimas sem outro testemunho que não eu. E como isso me foi prazeroso...
A radiação de estrelas azuis (ainda à semelhança de Antares que está a cerca de 550 anos-luz da Terra) foi por mim observável em total consternação de alma solta e livre, sentindo eu estar no Céu, em pleno uso das minhas capacidades mentais, mas, sem saber se me era dado o beneplácito de aí poder voar... mas voei, sei que voei, e entrei nessa tridimensional aferição estelar de ignota cosmogonia, do que tudo aquilo foi para mim que só conhecia pouco, ou muito pouco, do meu sistema solar, chamado de Via Láctea e, apenas e tão-somente através dos livros escolares. Como o Universo é lindo, vocês nem imaginam...!
KIC é isso tudo; magia, cor, movimento e brilho! E muito mais. Blue tinha razão ao afirmar-me de que o seu mundo era mais, muito mais do que eu poderia supor. Como o meu Blue estava certo! O seu KIC de berço, estudo e afeição, é de facto magnífico! E tudo isso o Cérebro me mostrou. «Obrigado, Cérebro, mil vezes obrigado, por tal me teres revelado...»
Um planeta muito grande (no que deu para perceber, três, quatro ou cinco vezes maior do que a Terra, não sei...) mas é distinguível de toda uma proeminente vegetação. Abeirando-se deste, em imagem tridimensional, o Cérebro foi-me relatando pormenorizadamente a sua morfologia geo-estratégica cosmológica dentro de um estranho e mui confuso sistema solar afecto de outros tão iguais ou distintos - e mesmo indistintos - planetas vizinhos. Uma maravilha! Tudo exulto de vida! Tudo!!! E como é tudo tão lindo...
Um planeta gigante. Um planeta verde e azul (verde de florestas, muito parecidas com as da Terra) e mares, muitos mares... fiquei siderada! Blue sempre soube o que era o mar... o meu mar, ou os dele, que ejectam fulgurantes por entre escarpas e falésias - mas consideravelmente mais íngremes e menos acessíveis do que as da Terra; pontiagudas e limítrofes de outras áreas, outras zonas cimeiras. Os mares revoltos, outros plácidos; água, muita água, como se de um núcleo aquático este seu planeta pudesse ter emergido ou em si emulsionado de outras actividades não-vulcânicas. O Sol, a sua estrela anã amarela (também similar à da Terra) é maior, ou parece maior. Talvez por isso a temperatura corporal de Blue ser tão baixa, como se estes seres precisassem de serem acalorados, acobertados de mais altas temperaturas (positivas) em correspondente afectação do que na Terra sentimos a espécies répteis necessitarem, sendo estas de sangue frio. Mas, contrariamente a estas espécies, pelo que vejo e anoto em Blue, nada ser idêntico a estes reptilários, o que muito me sossegou. Não gosto de répteis nem rastejantes; perdoem-me por isso. Sou humana...
A vida quotidiana destes seres (do que muito rapidamente me foi mostrado pelo Cérebro) é de uma perfeição, amplitude e quase beatitude ascética que me fez comover. Há espaços de meditação, oração ou apenas silêncio - o que apreciei ser muito interessante. Nas cidades, a luz e som (ambos em sintonia) erigidos através de edifícios de cristais, lembrando certos contos infantis da minha era na Terra, suscitaram em mim a pequenez ou deformidade cognitiva do que alguma vez eu pensei existir. A paz, a harmonia de movimentos e locomoção (em veículos não voadores mas propulsores de algo que não consegui definir «propulsão magnética, levitante e não-oscilante») levando os seus cidadãos em ascendentes autoestradas volumétricas de pouco espaço mas muita interligação entre esses cristalinos edifícios. Não estivesse eu bem acordada, e pensaria estar a sonhar...
O Céu limpo (não vi nuvens...) os corpos sólidos azuis, os comportamentos quase helénicos ou budistas em consentimento e, assentimento algo profusos e contínuos, no que tudo parece eclodir em magia sideral ou de uma ainda rara e frutuosa circunstância cosmológica de vidas a compor. Eu queria ter nascido ali, senti. E envergonhei-me por isso. Parecia estar a renegar a minha amada Terra; parecia estar a abjurá-la, a desconsiderá-la, pejorativa e pungentemente. Tive vergonha de mim. Depois aterrei. De coração e de mente, sentindo que estava a ver apenas e simplesmente, a terra-berço do meu querido Blue que tanto eu subestimara, ou talvez não, sentindo-me uma anacrónica molécula ambulante com transporte fetal de bolsa marsupial terrestre. Senti-me inferior. Eu sou inferior a Blue, sei-o há muito, mas nem por isso abdicarei de me legitimar perante si e perante os seus; doa a quem doer! E por falar em dor... agora já não sei o que isso é. Estou mais sólida. E mais confiante. Blue não me mentiu.
É por isso que acredito que voltará para mim, e que terá êxito no reactivar daquela geringonça estelar, qual monstruosa máquina voadora dos Kappa que só um feliz final terá, se se mover e chegar até aqui. Até mim. E que, em breve regresso, eu desejo abraçar em causa e conluio de podermos finalmente viver em paz, fora daqui, fora de Marte. Mas, inversamente e de dentro de mim, eu lhe consigne uma força maior e lhe possa dar a novidade ou boa esperança de em breve sermos também uma outra e nova família: na Terra ou em KIC. Tanto faz: do submundo ao mundo da luz (das trevas ao limiar dos céus...?) - Será que me posso vender assim...? Quererá Blue levar-me com ele...? Ou... (como não pensei eu nisto antes?) Terá família em KIC? Será...? Outra família...? Serei eu, agora, a outra, a megera, a terráquea meretriz de baixos recursos e condição sobre si? Será mesmo? Raios me partam esta insegurança! Raios partam isto tudo! Porque não volta ele? Terá desistido de mim???
E isso sendo verdade, deixar-me-à ele emparedada neste gulag marciano, neste exílio modular em que me encontro...? E se Blue fugir de mim, ou de ambos (de mim e deste nosso filho, após ter-lhe contado da sua existência) como ficarei eu? Sobreviverei? Poderá Blue fazer-me isso...???
«Meu amor, Blue, não me deixes, por favor; volta para mim, para nós... Nem quero saber para onde me levas, desde que leves... Blue, meu Blue, não me esqueças, não me deixes aqui...
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