Nasci numa noite de tempestade em pleno Verão, mas por certo, não tão violenta como a que vivi em 1892 que me roubaria a vida, na tenra idade de um ano.
28 de Outubro de 1892 - O céu rasgava-se num temor único de luz e som verdadeiramente aterrador. O vapor por várias vezes, oscilante e pouco firme, ia tentando manter-se à tona de água num mar vociferante de espuma e dor. Era perceptível o rumor das manobras de músculos e braços dos muitos tripulantes do navio sob ordens concisas do comandante do navio. O ar cheirava a enxofre, revelando-se asfixiante e mortal ante o que se poderia adivinhar. A minha cama embalava-me num sono pouco tranquilo fazendo-me acordar de vez em vez, indo por vezes bater com a cabeça nas grades de madeira que agora rangiam dolorosas, assim como o chão que parecia abrir debaixo de mim. Não via o meu corpo a balouçar mas conseguia observar a Nanny (Ama) a tapar-me as pernas com o seu xaile branco sem que dessa forma eu o mantivesse. Destapava-me, ante a sua agonia de mulher aflita em me querer proteger de algo. Até que o inevitável sucedeu. Primeiro um rombo estoico e seco... depois, logo depois, um rasgar ainda mais tenebroso do que o dos céus nos seus muitos relâmpagos e raios malditos que assombravam a noite. Foi quando ouvi uma outra criança gritar numa voz de soluço que sabia e conhecia como minha irmã - dois anos mais velha do que eu mas que igualmente aterrorizada, tentava em vão a busca por socorro.
Mummy,Mummy... gritava a minha irmã Gladys absolutamente horrorizada com o solavanco abrupto que sofrera. De seguida, em segundos que ainda recordo de forma tenebrosa, o ar encheu-se de fumo, labaredas e um sem sentido que me transportaria até uma espécie de inferno latente. Já não conseguia ver a minha Nanny nem sequer ouvir os lancinantes gritos da minha querida irmã. Eu era pequena demais para saber rezar ou firmar-me sobre alguma oração que tivesse ouvido ou perscrutado aos pais. Mas sei que o fiz. Só não sei como. Deus ouviu-me, pois sei que me segurou nos seus braços e dali me levou. Já não sentia a pele a arder, o fumo a invadir-me os pulmões e a queimar-me o meu pequeno e frágil corpo de menina ainda bebé. No estertor da morte que não mais é do que a esperança de uma nova vida, eu senti-me elevar em enorme leveza... e tudo isso numa paz indescritível mas por demais verosímil, no meio de um silêncio sepulcral entrecortado por vezes por sons levemente audíveis de anjos. Senti que estava deixando a Terra, entregando-me a esses anjos que me abraçavam agora em boas-vindas e de volta ao meu berço natural.
Foi tudo verdade. Sentido na pele e na alma. Impiedosamente! Por muitos anos tive este sonho, mais pesadelo do que sonho, afirmo-o sem qualquer dúvida ou hesitação nas rasteiras que a memória nos possa guardar sem que o saibamos como.
Comecei então uma luta desenfreada de conhecimento e fui investigar, pesquisar e sei lá mais o quê, no que acabei por encontrar. Não foi fácil mas uma vez mais Deus estava do meu lado porque, por coincidência ou não desta vida, acabaria por encontrar - em registo de um livro meu - toda a tenebrosa saga daquele fatídico episódio de há dois séculos atrás. Eu estive no local. Eu vivenciei aquela experiência. Foi como se tivesse chegado ao passado numa fracção de segundos, onde me coloquei no epicentro de um furacão marítimo em que haviam perecido 122 pessoas, de entre elas,10 crianças.
Descobri tratar-se do vapor SS Roumania que tinha largado de Liverpool, na Grã-Bretanha - carregado de mercadorias e levando a bordo 55 passageiros e uma tripulação de 76 homens - com destino a Bombaim na Índia, onde nunca chegou. A noite de temporal terá sido a principal causa do desvio da sua rota, vindo a encalhar num baixio, a escassas centenas de metros da praia. O vapor inglês naufragou frente a um rochedo chamado Gronho, perto da Foz do Arelho (a 20km a norte de Peniche, Portugal). Segundo os sobreviventes, o embate partiu o navio ao meio, provocando a explosão das caldeiras e matando de imediato grande parte dos passageiros e tripulantes. Também segundo o relato do correspondente do Diário de Notícias da época em Peniche «Os poucos que se salvaram deram à praia nus, confusos, feridos e extenuados da luta de algumas horas».
Talvez ser imortal seja isto: Acreditar que é possível viver continuamente para aprender. Ou até ao limiar da perfeição se tal nos for possível. Bem-Hajam!
Inevitável a emoção sentida ao ler estas linhas agora firmadas e para sempre lacradas por Mónica Bello no seu livro "A Costa Dos Tesouros" (Enigmas) em exímio texto sobre o ocorrido que teve honras de título no referido jornal como «Naufrágio Horroroso».
Tudo isto passado no Gronho, naquele farol de pedra e penhasco ladeado pelo intrépido oceano que tudo viu, a tudo assistiu sem clemência. E tão conhecido por mim... estranhamente. Senti que Deus me recolocara numa terra pela qual eu já passara e... precocemente desta vida levara. Tudo teria uma explicação ou provavelmente missão. A partir daqui só uma coisa me moveu: Saber se seria ilusão ou mera imaginação. Sabia que o tinha de fazer. Intuí no momento que devia fazer algo mais, deixar-me guiar pelo coração e não pela razão de estar a querer fazer parte de uma história que poderia não ser a minha. Mas a intuição era forte e o motivo perfeito. Senti ter de prestar a minha singela mas fervorosa homenagem a essas duas pequenas crianças - Joyce e Gladys - das quais eu fiz parte.
O SS Roumania ainda hoje é lembrado. Para muitos como uma tragédia sem igual, para outros apenas como um dos muitos desafios deste tão fustigado mar que se não comove por ninguém. O vapor inglês soube isso da pior forma possível na fatídica noite de 28 de Outubro de 1892.
O SS Roumania ainda hoje é lembrado. Para muitos como uma tragédia sem igual, para outros apenas como um dos muitos desafios deste tão fustigado mar que se não comove por ninguém. O vapor inglês soube isso da pior forma possível na fatídica noite de 28 de Outubro de 1892.
O rochedo denominado de Gronho sendo uma escarpa de respeito, frente a um mar igualmente temível, não deixa de ter os seus encantos. E forças desconhecidas. Tal como num disfuncional sentimento de amor-ódio, aquela beleza selvagem tanto atrai como repudia. Sempre o senti. Agora finalmente sabia da razão. Aquele Adamastor chamava-me e simultaneamente rejeitava-me. Como anteriormente. Era como se ele, aquele mar, soubesse de mim e de todas as minhas fraquezas ou limitações. Mas também desejos e ambições. Curiosamente nunca consegui molhar sequer os pés na beira desse mar bravio e sem lei que nos derruba até a alma, caso seja esse o seu desejo.
Ficava eternidades - que ainda hoje recordo com nostalgia mas também sempre com muita empatia - sentada no seu molhe altivo em visualidade ingénua do que ainda não conhecia mas sabia sentir no mais profundo de mim. Só mais tarde me penitenciei frente a esse mar, não sem, alguma morbidez de facto. Afinal, esse tão indomável mar tinha-me levado a vida, um dia. Mas fizemos as pazes.
Vou finalizar dizendo-vos de que estou em paz. Finalmente. Havia um caminho a fazer, a destinar em homenagem e respeito por duas almas que um dia povoaram esta terra e tão jovens partiram. Devia-lhes isso. Recrutei esforços e laços familiares para comigo pactuarem do mesmo sentimento. Não foi fácil mas aconteceu. Encaminhei-me para a Serra do Bouro - nas cercanias das Caldas da Rainha - em aldeia despontante no cimo de um monte; monte esse onde existe um cemitério local que alberga os restos mortais da sua população. E, por conseguinte, a jazida dos restos mortais dessas duas infelizes meninas.
Vou finalizar dizendo-vos de que estou em paz. Finalmente. Havia um caminho a fazer, a destinar em homenagem e respeito por duas almas que um dia povoaram esta terra e tão jovens partiram. Devia-lhes isso. Recrutei esforços e laços familiares para comigo pactuarem do mesmo sentimento. Não foi fácil mas aconteceu. Encaminhei-me para a Serra do Bouro - nas cercanias das Caldas da Rainha - em aldeia despontante no cimo de um monte; monte esse onde existe um cemitério local que alberga os restos mortais da sua população. E, por conseguinte, a jazida dos restos mortais dessas duas infelizes meninas.
No talhão virado a poente, as lápides. Os nomes. As flores. Nesse dia, o Sol incidia sobre as campas tumulares como janela aberta para o desconhecido. Ou para o reencontro. O meu peito latejou entre o que seria a alegria desse encontro - ou confronto - não ortodoxo ou talvez pouco consensual com o que sempre me assistiu mas fui. Não recuei na missão que até ali me levara em peregrinação ou sequer submissão a algo superior ante aquela que fora (ou seria?) a minha sepultura mandada erigir e, mesmo perpetuar, na memória de todos. Em particular, pelos seus desgostosos familiares descendentes que dessa forma quiseram e desejaram para sempre evocar a lembrança dos seus entes queridos arrancados tão cedo da Terra.
Joyce Pollard de um ano de idade e Gladys de três anos de idade, ambas lado a lado, na lápide exposta a poente do cemitério numa placa de homenagem - ali colocada cem anos depois pela comunidade britânica - expressando: -"In Loving Memory"
Não pretendo usurpar estas identidades. Não, de todo! Apenas dar acalmia a pesadelos que ao longo dos anos possuí sem saber da razão. Acredito piamente na Reencarnação, aquela grande força motriz de alta engenharia universal que nos faz viver e reviver muitas Outras Vidas sobre vidas passadas e futuras.
Não pretendo usurpar estas identidades. Não, de todo! Apenas dar acalmia a pesadelos que ao longo dos anos possuí sem saber da razão. Acredito piamente na Reencarnação, aquela grande força motriz de alta engenharia universal que nos faz viver e reviver muitas Outras Vidas sobre vidas passadas e futuras.
Será isso a Imortalidade de que tanto falam!? Quem tiver o domínio absoluto da resposta que o diga. Ou apenas o sinta, como eu. Tenho a minha fé sem ser fundamentalista. Rezo por vezes. Ouço-me em oração sob o mais crepuscular silêncio de todas as coisas como interiorização maior ou expiação de pecados que julgo não ter. Não sou mais nem menos do que qualquer outro cidadão comum que pertence a este grande mundo global, determinando-me Portuguesa, Europeia (por enquanto...vamos ver) e mulher quanto baste.
Por consenso, tudo nos é transversal um dia na vida. Somos o que somos: seres biológicos pensantes e inteligentes até certo ponto. Ninguém é superior ou de tal forma inatingível que se possa alhear ou distanciar desta realidade. Todos temos uma missão na vida. Ou várias. Possuir esse conhecimento é vital. Ser ignaro é que não, pois pode ser fatal.
Acredito sinceramente em valores maiores que nos regem nesta vida. Somos seres espirituais e muito mais do que nos fazem crer à nascença. Ninguém é perfeito, apenas humano. Podemos até ser básicos, segundo outros sumos valores que ainda nos ultrapassam.
Por certo também eu farei parte dessa massa humana civilizacional ainda tão remota, atrasada ou pouco evoluída que alguns denominam de «Primitiva, Selvagem e Perigosa» em amostra genética na consideração (ou desconsideração) dessas outras entidades que nos visitam e estão entre nós «As Outras Almas» - aquelas que estão acima de nós numa contingência interestelar e cósmica. Sem dúvida que nos são seres superiores, cientificamente falando! Quanto ao coração e a uma alma nossa, isso já é outra coisa. Quanto a mim, só quero ser feliz. Nesta e em muitas outras vidas.
Talvez ser imortal seja isto: Acreditar que é possível viver continuamente para aprender. Ou até ao limiar da perfeição se tal nos for possível. Bem-Hajam!

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