A noite estava tórrida. As cigarras cantavam em zunidos estridentes e pouco melódicos para com a harmonia da acalorada noite de mil estrelas no céu e uma brisa suave, terna e doce. Os latidos dos cães ainda não adormecidos pelo abafado do ar e, das carraças que lhes não davam tréguas, iam compondo aquela noite de Verão como tantas outras. O sussurro ecoado entre paredes que vinha do televisor da sala em anúncio e perspectiva de mais um episódio da série "Dallas" e que fazia as delícias do patriarcado lá de casa, reportar-me-ia a certeza do avançado da hora. Esperava sentada nos degraus da casa dos pais por aquele que era no momento, o meu namorado de intenções sérias e para casar. Achava eu.
As notícias do mundo, afagavam-me a ideia de que era urgente mudá-lo. Só não sabia como. Havia guerras, golpes de Estados e invasões permanentes neste ou naquele país, conhecido ou não. Por meados de Junho, a união soviética (URSS) tinha anunciado uma retirada parcial das suas tropas estacionadas no Afeganistão e na América(EUA) o ex-governador da Califórnia, Ronald Regan era designado candidato do partido republicano à presidência. Quem haveria de dizer que, passados vinte e tal anos depois, este ultimo desse origem ao nome de berço do nosso menino lusitano de chuteira no pé e brinco na orelha e que é o orgulho nacional, maior do que o do nosso primeiro rei. Pois é. Ele mesmo, o nosso Cristiano Ronaldo, dito e assumido pela sua mãe, dona Dolores, mulher de garra e de brio que sempre venerara esta figura norte americana, primeiro em actor e posteriormente em presidente dos Estados Unidos. Coisas...
Eram os anos oitenta e está tudo dito. Muita lantejoula, muito disco sound, muito de tudo. Penteados que não lembrariam ao marquês de pombal, fatos esfuziantes de brilho e tecido coleante que não deixava nada à imaginação. Tempos bons. Ouvia-se Rod Stweart, Bonnie M, Peter Frampton e tantos outros. Refiro estes pois eram os meus preferidos, onde eu dançava à maluca soando as estopinhas e quase ficando em rigidez post mortum no dia seguinte. Mas valia a pena!
Finalmente, o rapaz lá apareceria em boleia e vigília de namoro corrente. Eu estava-lhe grata por isso. Não era fácil naqueles tempos, poder sair-se de noite sem companhia de lado pois que os tempos não eram de libertinagem como os de agora, diria a minha santa avó se ainda fosse viva, coitada. E lá fomos. Para o que seria, uma outra noite de folia e despojamento de corpos e almas na jovialidade que ambos possuíamos e jamais nos voltaria a ser concedido porventura, nos anos seguintes. Quando íamos no caminho, algo se passou. Não nos apetecera ir tão cedo para a discoteca que nesse tempo tinha a designação de "boíte" ou coisa assim e, como tal, termos ido por um atalho em rota ascendente do que nos parecera ser uma montanha agreste de estrada irregular em que por vezes o macadame se confundia com o alcatrão, fazendo o automóvel estrebuchar como latrina de outras épocas. Até que...para mal de todos os nossos pecados - para quem só queria ir namorar um pouco, ouvindo música e dar uns beijinhos...- o carro parou. Morreu. Grande estupor, diria o meu companheiro da refrega, vendo-se em noite frustrada de me ter em seus braços pouco musculados ainda mas de imensurável garra de quando me agarrava nestes e eu lhe sentia o cheiro a alfazema e lhe dizia que era o melhor odor do mundo em campo aberto. Ele sorria, confrangido e de forma inocente, retribuía-me o elogio, enaltecendo a minha púbere e jovial beleza, acariciando-me os cabelos, olhando-me nos olhos e beijando-me nestes, beijar-me-ia na alma. Éramos jovens de facto. Como tantos outros, seja lá qual for o tempo em que tal se apresente. Não existe uma época definida para se amar. É intemporal e, eterno esse igual amor. Desde o tempo de Romeu e Julieta, suponho.
O automóvel asfixiou. As luzes dos faróis apagaram-se. o motor silenciou-se. Parecia um filme de terror. Dos maus! Eu só queria sair dali, daquele morro de nenhures em escuridão total. Nem me lembro se havia lua ou algo que nos iluminasse no meio do nada. O infeliz do meu amigo e namorado bem tentava dar à chave, fazendo a ignição soltar gemidos de dor cavernosa em acção mortal do que este insistentemente lhe incidia. Até desistir. E eu: Porra pá, tinhas logo de vir para aqui. Não se vê vivalma! Ninguém nos vai ajudar agora!..e por acaso, puseste gasolina nesta coisa...? - Dizia eu, furibunda com a impotência demonstrada dele e...minha. Pouco havia a fazer. E ele: Claro que sim! E é gasóleo! Não é gasolina!...E eu: Grande parvo, agora eu é que sou a ignorante, é...? então se és muito espertinho, vai lá arranjar maneira de nos tirar daqui ou então vou por-me pés a caminho e vou-me embora!
A coisa não resultou. Nem a birra que fiz como menina mimada (e muito assustada) nem a demanda de me ver sozinha por ali abaixo sem qualquer luz de candeeiro, lanterna ou vela que me assistisse. Amuei e depois quebrei, quando o vi deveras preocupado com a minha segurança (e dele, também) no meio de uma serra perdida que ficaria encravada entre São Martinho do Porto e...saber-se-ia lá onde. A nossa bússola pessoal não era muito boa, certamente. ele conhecia melhor aqueles caminhos do que eu, que só em veraneio é que por estes andava, mas, de dia. De noite, nunca! E ele, era o grande culpado, acentuei-lhe bem na cara que mal via perante tamanha opacidade nocturna. Mas havia estrelas. E uma, em particular. Brilhava muito! Santo Deus...como brilhava. Era de facto, a única coisa que brilhava na noite. Isso e...o meu top de lantejoulas!...tornei a olhar, observando agora mais em pormenor, o quanto esta estrela radiosa e mágica, nos ofertava em oscilante sentido, como se nos quisesse guiar para um determinado caminho. Tivéssemos um jumento ali, e sentir-me-ia a Maria, e ele, o José.
Não quero ferir susceptibilidades a ninguém nem parecer pouco humilde, mas efectivamente aquela noite atípica e esquisita quanto bastasse, aferir-nos ia a certeza de que algo magistral se estaria a passar. Demos as mãos em comunhão de solidária temeridade ou infeliz cumplicidade de estarmos a ser uma espécie de amostras biológicas de algo ou alguém. Como cobaias. Ainda hoje não sei o que nos precipitou para aquele ermo temível de trevas e devassidão de almas...mas sei que fomos ambos empurrados na desdita. se nos levaram em naves e nos abduziram, não sei. não vi marcas no meu corpo nem tive qualquer alteração de pele, sentidos ou outra coisa do género. Acho. Não sei. A luz da estrela era enorme. Gigante. De uma beleza inumana. Fomos atraídos como abelhas ao néctar. Do que me lembro, só sei haver em mim, uma paz silenciosa, dulcífica e gostosa. Ele, também. Mas após esse interlúdio que não sei dizer de quanto tempo, o meu amigo de nada se recordava. Fiquei furiosa. Eu não enlouquecera! Tínhamos entrado numa centrifugada situação de luz, cor e ambiência extra-terrena e o parvalhão de nada se lembrava. Senti-me idiota. Senti-me violada no âmago do meu ser. Quando precisávamos deles, os gajos falhavam-nos! Bem feito para não achares que és mais esperta que os outros, terá dito a minha voz da consciência ou, o meu desgraçado guia espiritual que devia de andar tonto, de tanta trabalheira que eu lhe dava.
O automóvel sem ninguém lhe mexer...começou a roncar. Foi um susto de morte! Os faróis acenderam e um cheiro a combustível queimado, eclodiu no ar, trazendo-nos à realidade. Eu só queria sair dali. Ele, também mesmo sem o saber explicar. Pediu-me desculpa por me ter chamado (ou insinuado) que eu era ignorante, no que se relacionava com combustíveis e que agora, já tudo no sítio, voltaríamos a ser os mesmos amigos de sempre. Eu cá achei que ele me estava gozar ou então a fazer-se de forte para ter no imediato, esquecido tudo. A luz, o sentido giratório e vibratório que nos induzira em parcial ou total hipnose (não sei) e tudo o mais que eu também já não recordava lá muito bem. Que noite confusa!...admitimos ambos.
Os meus encontros imediatos ou de poltergeist, já estavam por demais inseridos na minha vida como peçonha ou doença hereditária da qual se não pode fugir. Deve ter sido uma lembrança da Bruxa Má de algum elemento da minha família que não fora convidado para o baptismo, considero. Aprendi a conviver com estes surtos inusitados e em mim, ilimitados de acontecimentos estranhos e mesmo, doentios. Até parecia que eu tinha um íman para este tipo de ocorrências paranormais...o que senti, à medida que fui evoluindo no conhecimento e, na idade em maior maturação e trato destas coisas do além ou do universo que nos vê nascer e morrer, de ter uma missão pela frente, aprendendo e não subestimando tudo o que se passa em nosso redor. ou, fora deste. Ainda estou a aprender. Até que tudo seja cumprido. Não falo com Jesus (mas tenho pena...) mas falo com o meu guia que até já dei nome e ele me diz que é errado e não se chama assim mas eu gostei de: Muriel. Soa um bocado andrógino...talvez por isso. Indubitável acredito, é no poder que todos possuímos em nós, com guias ou sem estes para quem não acredita nestes agentes espirituais de asas ao vento, acopladas a si. A resiliência do ser humano é fantástica e eles sabem disso. Se nos fabricaram, não sei. Cristo sabia, não ser deste reino. Apesar das distâncias efectivas de mim e de Jesus, também eu, singela (para não dizer, simplória...) cidadã do mundo, acredito que existem personalidades que igualmente o não serão. e outros tantos, se nos estão misturados. Muitos, o reconhecem. Eu não. Tanto se me dá que sejam de Andrómeda como de Marte desde que não interfiram com o nosso espaço, o que para isso já levamos milénios de avanço, em fazermos de nós próprios bodes expiatórios e assassinos em massa. Como nos matamos uns aos outros, também não precisamos do que vem de fora...perdoem a ironia parva. mas assim é. Infelizmente. Não peço que me julguem. Até pela razão de que o julgamento final, será o de Deus e, no que estou convicta me irá ouvir. Se me irá absolver dos pecados...isso já não sei mas espero veementemente que sim. Deus queira que sim!...
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