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segunda-feira, 22 de julho de 2013

A Demanda


Vamos falar de sonhos.Já se sabe que o sonho comanda a vida. No meu caso...as muitas vidas que tive e, possivelmente, virei a ter. Este, foi dos mais enigmáticos e certamente - acredito! - de todos,o mais hediondo.

- Senhora!...Senhora...eles vêm aí! Fuja,Senhora! Fuja...por Deus Nosso Senhor!
De imediato não me apercebi do que estaria a suceder mas,ante a visível aflição da irmã - uma das muitas que para aqui foi desterrada por pais capciosos e malditos,suponho - neste claustro de jardim e pedra tumular onde me encontro. Senti,ter de agir rápido e daquela roda infantil,fugir.Estava a brincar com as crianças num círculo de mãos dadas em cantorias e alegorias,à Primavera que se avizinhava em flor.No meio dessas crianças,estão alguns dos meus filhos,pequenos ainda. Como formiguinhas tontas,pressentindo o perigo iminente,correm desnorteadas em salvação própria de um qualquer esconderijo. - Jesus! Eles vêm aí!

Não eram amistosos. Sentia-se no ar,a hostilidade de um vento maldito que me fazia esvoaçar o longo cabelo entrançado que eu sustinha como ancora de navio que tão bem o meu senhor conhecia e,amava. E agora que fazer...? Indefesa e só,no meio daquele extenso e luxuriante jardim mas,por demais exíguo,para que me servisse de abrigo ou protecção maior. Observei ao longe a Madre Superiora que gesticulava na minha direcção numa língua gestual indecifrável.Tudo,infrutífero!
Ouvi os cascos dos cavalos - não muitos,alguns...-talvez,quatro ou cinco equídeos que estacaram a acelerada,violenta mesmo,cavalgada. Senti-o. Relincharam,agressiva e teimosamente na premonição assertiva,do que estaria prestes a acontecer.Pressenti o perigo mas,não havia fuga possível!
Tremia. Deus meu,como tremia!...Nunca fora covarde mas por vezes a coragem,tem limites. A minha,tinha chegado ao seu. De uma assentada,aqueles três homens na minha frente,surgindo do nada...- do Inferno acreditava -de espada desembainhada (um deles,pelo que verifiquei de mais acirrado e,impetuoso) dirigindo-se a mim. Parei de respirar. O coração saía-me do peito,batendo veloz e num descompasso doentio,descompensando-me igualmente uma maior consciência de fuga e sobrevivência. Cerraram-me entre si,espiando-me os gestos e os movimentos que estatizei sem luta aguerrida,sem nada. Neutralizaram-me. Até a alma.Eram homens de guerra e armas,de poder instituído,poder absoluto e,a mando de alguém superior.Percebi tudo. De imediato.Não vinham em discurso ou,grandes preocupações de entendimentos. Vinham cumprir ordens. Ordens essas,terríficas e quiçá fatais,sobre a minha pessoa.
Não me ouviram nos apelos e nas súplicas,de que parassem nos intentos.De que me poupassem na alegoria infeliz de me ceifarem a vida. A única palavra mortal que me proferiram em sentença irreversível,foi a da ordem expressa e única também,de me colher a vida por escolhas que eu fizera. Maus,rudes e sem pinga de piedade alguma,taxativos no que estariam prestes a cumprir,enunciariam ainda de que vinham a mando do mui dignitário e reverendíssima figura do seu senhor,El Rey D.Afonso IV.
O terror apoderou-se de mim.As lágrimas,secaram-se-me. A palidez,copiosa. A minha voz,silenciou-se então,após o cilício daquela tortura que me impunham de não acederem aos meus pedidos clamorosos de me pouparem a vida. A nada,ouviram. - Pelos meus filhos...peço-vos! Apiedai-vos de mim,peço-vos!...Rogo-vos! - E ia tentando proteger o meu roliço ventre,resguardado que não estava daquele desmando malévolo e traiçoeiro na pessoa de um rei sem escrúpulos nem coração. Continuava a tentar cobrir o mau prenhe ventre,cheio de vida inicial que eu temia que de mim levassem também em asserção máxima de uma malvadez ímpar. Como se poderes houvesse,daquele filho salvar...mas poderes,não tinha. Nenhuns!Estava só. Completamente só.Ninguém me podia salvar.
Foi tudo muito rápido. Num acto de áspide humana,subitamente,um dos três - o mais corpulento e possante,provavelmente o mais temível - soerguer-me-ia,cerrando-me nos seus fortíssimos braços como correntes de aço e ferro,sufocando-me o querer e tudo o mais,de encontro ao seu tronco de homem de guerra. Com uma mão,segurar-me-ia o pescoço frágil e,com a outra,a espada enorme e fulgente com que me degolaria. O meu ultimo olhar,foi para a árvore rainha que tantos lamentos me ouvira mas tantas alegrias também,houvera,sustendo-me numa escassa e rude vida,breve,muito breve agora. E,por amar quem não devia. Mas para sempre em eternidades que ninguém me tiraria,amaria!
A visão embaciou-se-me. E tudo ficou turvo. Mas ainda os ouvi,proclamar: -A ordem foi cumprida! Por El Rey,nosso Senhor único,por terra e por mar,nosso El Rey D.Afonso IV!!!
 E eu...esvaindo-me em sangue,pendendo-me a cabeça,moribunda e exangue,exauridas as forças,latejando sobre um peito desnudado,lembrava ainda,o meu grande amor na terra,no meu príncipe e senhor D.Pedro I. Meu senhor...meu Pedro,meu único e grande amor!...para sempre...para sempre...

Posso afirmar o que sonhei,o que senti mas,não me arrogo no direito ou,na pretensão hierárquica de ter sido em pleno século XIV,uma aia espanhola morta. Dito deste modo,parece cruel. E foi-o sem duvida alguma. Esta mulher,rainha depois de morta,depois de desenterrada a título póstumo,sendo a sua mão beijada pelos subditos do reino em imposição implacável de um futuro rei de Portugal,destruído na dor e porventura,na alma. Não possuo dados bibliográficos ou documentação histórica que o comprovem ou provassem.
Pode ter sido,meramente,um paralelismo de destino tão idêntico quanto fatal e a pronunciação do nome desse tão despótico rei também,ter sido sugestionado por algo que me transcende. Nas regressões ou sonhos de proveniência interior em meditação ou semi-consciência - em espaços psiquiátricos ou fora destes - o certo é que,por vezes,se atingem estados de verdadeira ocorrência passada. Como disse inicialmente,não me arrogo nesse direito de ter sido a tão amada (e simultaneamente,tão odiada)por aqueles dois homens de sangue real,de pai e filho. Poderá ser somente,uma abnegação minha,endémica e profunda do amor incondicional que devotei nesta tão nossa clemente e piedosa figura da História de Portugal. Pode ser...não sei. Dª Inês de Castro,a linha rainha que o nunca foi. Em vida.
Vivi neste sonho pormenores que não sei se existiram ou foram apenas reminiscências de uma escolaridade histórica que terei retido em mim ao longo dos tempos. Sabia-me grávida. Não tenho esse precisão documental se acaso a senhora dona Inês estaria ou não de esperanças,apesar de ter considerado - uma vez que observei em visita ao Mosteiro de Alcobaça,onde os seus restos mortais,jazem - a deferência coloquial de ambas as suas mãos,amparando o regaço e não o sobre o peito como seria habitual. Pode ser algo factual e sem significado,ante uma leiga ou ignorante como eu sem habilitações históricas concisas sobre o processo tumular da época. Pode ser. Não o questiono. Só posso referir o que auferi numa onírica amostragem de um,dos episódios mais trágicos desta nossa História. Sei o que sonhei e o que vivi em corpo e mente,decalcados de um tempo que,eventualmente,em vivência suportei,sofri e,amei. Tudo por ti,minha rainha DªInês de Castro. E um dia,se faça justiça em todos nós que nenhuma terra valerá uma vida. Salvé Rainha DªInês! Repousa em paz!...


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