Há almas eternas, outras imortais e talvez até mesmo outras confortavelmente emanentes sobre o Universo; cabe-nos a nós descobrir quais as que nós somos, por outras que andam por aí...
Translate
segunda-feira, 14 de agosto de 2017
Memórias do Mar (V)
Pirataria no Mar: roubos, violações e mortes; além a indissociável maldade ou, horrífica verdade, contada não pelos mortos mas pelos que ficaram, estropiados e devassados por todas as indignidades possíveis e inimagináveis num tempo de vasto canibalismo e outras histórias trágico-marítimas que aqui se documentam, sentindo-se ainda o sabor a sangue, o sabor a morte, misturados ambos com o sal do mar...
«Foram comidos escondidamente, muitas vezes de noite, pelo arraial, muitas espetadas de carne que cheiravam excelentíssimamente a carne de porco (...). E conhecendo eu o que era carne humana, me fui e dissimulei com eles».
- Relato de: Francisco Vaz de Almada sobre a desesperança e sobrevivência dos marinheiros portugueses na tortuosa e mui longa epopeia marítima até Sofala -
Todos os povos que navegaram pelos mares de outrora o souberam e jamais negaram, por muito que se sentissem humilhados ou retalhados na sua alma de homens do mar, homens de barba rija e modos austeros, ainda mais severos, ímpios, que os desmandos decretados pelo mar nas suas ensandecidas marés ou das vagas que as compunham.
Os Portugueses conheciam-na bem: à dor maldita e enfezada do escorbuto mas pior ainda, da dentada incrustada nas entranhas da fome e da punição de um chicote permanente que antes de perfurar pulmões, atiçava a carne e a alma quase desencarnada num excruciante horror que a todos depunha.
Poder-se-ia fugir às naus d`El-Rei e Senhor de Portugal? Jamais! Eram dados como desertores, vermes prevaricadores do Reino de Sua Majestade e, tal como tantos outros, viessem os infernos das masmorras e das infectas celas do Rei - que não as dos mares de outros estupores que a morte cercava e não saciava - se não pela intempérie, pela dos seus companheiros igualmente insaciáveis de outras fomes, outras dores...
Mapa histórico da ilha de Moçambique. « Em este lugar e jlha a que chamão Mõcobiquy estava huñ Senhora que elles chamavam Colyytam que era como visorrey o qual veo aes nosos navios por mujtas vezes com outros seus que com elle vinham (...)». Em tradução: «Em este lugar e ilha a que chamam Moçambique estava um senhor a que eles chamavam sultão, que era como vice-Rei, o qual veio aos nossos navios por muitas vezes com outros seus que com ele vinham».
A Longa Caminhada Marítima
Sabe-se ou intui-se talvez, a longa caminhada marítima perpetrada por portugueses na época quinhentista dos Descobrimentos. Mas, intui-se também, a já irrefutável teimosia (endémica neste povo do sul da Europa), alada a uma incisiva genética dos navegadores lusitanos nesta genealogia fantástica - em herança na maior parte das vezes, que não em proventos outras vezes - de toda uma não menos exultante História trágico-marítima que ainda hoje nos corre nas veias.
E desta História, de sabor a sal e a lágrimas de Portugal e dos Portugueses, nem toda foi ou nem toda se conta de alto gabarito antropológico, se se tiver em conta a insinuada evolução (ou mais exactamente atribulação), a bem dizer, da sobrevivência ou mera consciência de se fazerem viver, para mais tarde não contarem mas antes esquecerem do que então por lá viveram...
Representação das costas de Sofala, Moçambique e ilhas, na representação marítima da navegação portuguesa por terras do Índico, de Moçambique (África) até à Índia. Mapa de Jan Huygen van Linschoten (1563-1611).
Os Portugueses de aquém e além-mar, de tempos idos e outros provindos (poder-se-à futuramente reconhecer), souberam-no confraternizar mas não amenizar, não sem antes muitos acontecimentos ocultarem, até ante os seus próprios olhos ou memórias de um mar nem sempre benigno nem sempre soalheiro. E de tão matreiro ser, ficou-lhes a desesperança no olhar mas nunca na certeza de um dia poderem voltar...
E já em terra firme, os que lhe sobreviveram, a esse indómito mar, vão ainda a contragosto sentir-lhe esse outro gosto, esse outro sabor - que sabia a fel e a doce churrasco - na azeda ou contranatura contradição que lhes foi salvadora, do que lembram da insidiosa degustação dos restos dos seus irmãos por um tão ranger de estômago e aflição de, não serem eles, os próximos a serem «provados» ou simplesmente degustados...
Mapa de 1595 (século XVI). Referenciadas ilhas e a capital portuguesa das Índias Orientais. Mapa da época registado - in Itinerário, viagem ou navegação de Jan Huygen van Linschoten.
Muitas outras representações de van Linschoten que evocam as costas do país chamado «Terra do Natal», assim como todas as costas de Sofala, Moçambique, Melinde e da ilha de São Lourenço, com todas as suas ilhas (desde Maldiva até à ilha de Ceilão, e o cabo de Comorim, situado na costa da Índia), em que se define a extensão e a situação fiel das mesmas, tudo muito correctamente, segundo os melhores roteiros e cartas orientais, revisto e corrigido. Todo este espólio cartográfico deixado por Jan Huygen van Linschoten encontra-se exposto no Museu Marítimo de Roterdão, na Holanda/Países Baixos.
O suplício da nau São João Baptista, em 1622, em que nem o nome bíblico, associado às tantas dores havidas por parte da sua tripulação, amorteceriam estas; já não bastava o negro período da dinastia Filipina, em Portugal, no seu reino de destino e chegada, quanto mais o não se ver o mar de Lisboa e ficar por tão longe e tão perto de nada...
A Nau São João Baptista e o seu infortúnio...
Estava-se então em 1622 sob a égide da nau São João Baptista com uma investidura humana de 280 almas de marinheiros portugueses (e não só!) que, pela honraria e préstimos ao Senhor e El-Rei (agora) de Portugal, na dinastia filipina - Filipe III (IV de Espanha, no mais odioso reinado sob a custódia espanhola de 1621-1640, aquando a independência de Portugal)), houvera zarpado no belo dia de 1 de Março deste épico ano de 1622, de Goa, na Índia, em destino para Lisboa (Portugal) onde jamais chegariam...
E se os sons eram de revolta no reino (Portugal), nas naus e nos mares do Oriente, não o seriam. E sendo-o, eram de imediato silenciados. Com a morte! Simplesmente pela razão de outros ventos, outras marés e outras enquistadas turbulências como a que se veio a registar na grande massa humana em naufrágio e, sequência, naquele supliciante dia de São Jerónimo de 1622, em que os homens até rezaram e chegaram a dar graças aos céus por se encontrarem tão perto de uma praia de areia onde pudessem desembarcar. Se foi graça ou não, a História hoje o julgará...
Sabiam que as redondezas escondiam perigos insondáveis, segundo nos confere o espólio agora apresentado e adquirido por Francisco J. S. Alves - alto responsável do CNANS - que prestigiosamente assim o recolheu em depoimentos e documentação por si observados e anotados (na grande quantidade de dados acumulados nos arquivos e bases de dados do Inventário Nacional do Património Náutico e Subaquático da Carta Arqueológica de Portugal, geridos pelo Centro Nacional de Arqueologia Náutica e Subaquática de mais de 6000 registos), além a documentação histórico-científica que aborda todos estes relatos. Mas continuando...
Apesar desses insondáveis perigos, tudo lhes parecera melhor, a toda a tripulação da São João Baptista, do que ir a pique, ao fundo, com a nau. Até os cerca de 1700 quilómetros a pé que teriam de percorrer para alcançarem Sofala, onde apenas 31 náufragos iriam chegar com vida. Sobreviver era uma força contínua e assim teria de continuar a ser, aventa-se.
Com Pêro de Morais Sarmento por capitão, a sua nau tendo largado de Goa com destino a Lisboa, na companhia de três outros navios, vinha demasiado carregada (o que já vinha sendo hábito infelizmente...) e deveras mal preparada para a viagem: As bombas de água eram pequenas, próprias de um galeão e não de uma nau; o leme tinha já pertencido a outro navio e há dois anos que se encontrava abandonado na praia. Armada com apenas 18 peças de artilharia, faltavam ainda munições e pólvora, caso fosse preciso dar batalha a algum inimigo.
A Batalha que durou 19 intensos e sangrentos dias... mas que não faria esmorecer os homens de grande garra e muitas honras de se não verem morrer às mãos de outras ondas, outros piratas...
A Trágica Epopeia
Depois de 20 dias de viagem, já a nau metia muita água, que foi necessário ir despejando com o auxílio de barris. Depressa perdeu de vista o resto da armada. E como um mal nunca vem só, a 19 de Julho, por alturas do cabo da Boa Esperança, o nascer do Sol revelou duas naus holandesas pela proa.
O Combate, segundo o relato de Francisco Vaz de Almeida, durou 19 dias, de Sol a Sol, deixando a São João Baptista em estado miserável. Sem leme nem mastros e a meter água mais depressa do que era possível despejar, nada se augurava de bom. O tempo também não ajudava. Naquela altura do ano e por aquelas latitudes fazia frio e chegava a nevar, o que causou a morte a muitos dos escravos que seguiam a bordo.
Quanto às Naus Holandesas, o mau tempo acabaria por afastá-las, deixando a São João Baptista à mercê das correntes e dos ventos. Levantaram-se madeiras a fazer de mastros provisórios e a bordo fizeram-se procissões e pediu-se penitência pelos pecados.
Parecia não haver salvação quando, a 29 de Setembro, se avistou terra, finalmente. Encontravam-se algures na costa Sul-Africana do Natal, entre o cabo da Boa Esperança e o cabo das Correntes. E começava aqui uma das longas marchas de sobrevivência na História Marítima Portuguesa.
Há quem afirme que: «Homens Mortos não contam Histórias» como, na saga cinéfila dos Piratas das Caraíbas mas que, todavia, ressuscitados ou reencarnados numa outra história, haveriam de dizer de sua justiça em ombreira ou costumeira afiança de vidas desembainhadas sem grande serventia...
Facadas e outras serventias...
Sabe-se que o Desembarque dos Náufragos não começou da melhor maneira. O capitão Pêro de Morais Sarmento ainda teve de matar «às facadas» um tal de Manuel Domingues, que substituíra o mestre da nau, morto durante o combate com os Holandeses.
Domingues, ameaçando com um motim, tinha proposto a Morais Sarmento colocar em terra apenas 30 homens armados, deixando as outras duas centenas de almas à sua sorte.
Desembarcar 279 pessoas e toda a restante mercadoria levou quatro dias de intenso tráfego em suor e possivelmente muitas lágrimas (escondidas!) pelo que supõe. E, durante um mês e meio, ali levantaram acampamento preparando-se para o árduo caminho que os devia levar ao longo da costa até Sofala, onde os náufragos esperavam arranjar transporte para a ilha de Moçambique.
Entrincheiraram-se, ergueram choupanas e uma igreja «coberta com velas, forrada toda por dentro com cobertores da China, bordados de ouro e de muitas outras peças ricas, de modo que toda estava cosida em ouro», e onde se celebravam 3 missas por dia!
Pêro de Morais Sarmento mandou queimar então a nau, já sem serventia, e que «a pedraria toda que na nau vinha se metesse em uma borçoleta».
Os «Cafres, mais brancos que mulatos, homens corpulentos», não lhes deram grandes preocupações. Aos nativos compraram vacas para o sustento e para transportarem carga na viagem. A 6 de Novembro, finalmente, puseram-se a caminho.
No dia seguinte, um grupo de nativos roubou-lhes as vacas e ficaram a saber que só dali a dois meses de marcha encontrariam outras para transportar as mercadorias e os mantimentos, que a partir daquele momento, não tinham outro remédio senão carregar às costas.
Esperava-se uma paisagem deserta, dias de fome, doença, roubos, enganos e castigos de morte. Alturas houve em que não tinham mais nada par comer senão alforrecas ou vinagreiras. Daí que não desperdiçassem, os homens, a carne de branco ou negro que morresse ou se matasse. Tempos mui duros, acrescente-se!
E o melhor exemplo disso, ainda que tétrico e pouco pormenorizado ao que se consta, o de um jovem português que o capitão mandou enforcar por andar a roubar comida, ou os três negros que não chegaram a estar na forca até ao fim da manhã, ao que nos relata em desvirtuosa descrição, Francisco Vaz de Almada que afere estes terem sido comidos escondidamente...
Canibalismo ou pura sobrevivência de quem nada tinha para comer...? Distintos e longínquos são hoje os tempos ou nem tanto assim, para quem sofrerá de iguais agruras atempadas num espaço perdido mas, identicamente destemperadas de um maior raciocínio ou lógica de quem só quer sobreviver...?!
Por fim, Sofala!
Subiram serras, atravessaram rios e, a 2 de Fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias, ainda faltavam 5 meses de marcha, pressupondo-se esta, uma terrível e longa procissão em agonia e quase maldição por parte de todos.
Homens, Mulheres e Crianças já tinham ficado para trás. Exaustos ou mortos. Muitos mais ficariam, incluindo Pêro de Morais Sarmento. A Sofala chegariam 31 homens em Agosto e, destes, 27 seguiriam para a ilha de Moçambique.
«Fomos todos em procissão a Nossa Senhora de Baluarte (...), cantando todas as ladainhas com muita devoção. (...) e lembrando-nos a muita obrigação que tínhamos todos de fazermos dali por diante vida exemplar.» - Estes, os últimos testemunhos deixados pelos que sobreviveram, enaltecendo os feitos mas esquecendo o que os envergonhava cristãmente (ou cristianamente na versão castelhana).
Uma imagem/cena do filme, Piratas das Caraíbas: Homens Mortos Não Contam Histórias». Será mesmo??? Poderá o capitão Jack Sparrow (criado pelos escritores Ted Elliott e Terry Rossio e interpretado pelo actor Johnny Depp) afirmá-lo em toda a sua genial autenticidade de personagem fictícia que é - sublime, sem dúvida! - fazendo jus a tantos outros piratas que, efectivamente, existiram por esses mares fora criando o terror e a fúria de quem com eles se cruzassem???
Benito, o pirata galego (1805-1830)
Sem descurar a vertente paranormal do que rege, incentiva e estimula toda a epopeia cinéfila dos Piratas das Caraíbas, na entusiasmante personagem que até encarecidamente nos faz com ele identificar ou mesmo outorgar outras justiças a si aplicadas, este pirata galego de larga e estouvada estirpe, que alguns referenciam como «O Português», nada teve de confronto com fantasmas do passado ou espíritos perturbados mas, a real mesura e feitura de ser um ladrão, um violador e um assassino, tudo junto!
Mais tarde se viu a braços com a justiça, não a divina mas a dos homens, acabando os dias na forca e em praça pública por desmandos de seus tão vis actos sobre outros navios e suas tripulações. Violava as mulheres, matava os homens e incendiava os barcos, depois de obviamente saqueados e desprovidos de todos os seus bens; algo que nem o CSI da época poderia colmatar, em referências ou quaisquer evidências do que por estes teria sucedido...
O Pirata sanguinário ou o espanhol errante (ou ainda, «o português») que nesta imagem perdura em registo e má-ventura do seu saque e da sua cupidez maldita que, ceifando morte, acumulava riquezas, numa rota marítima de sangue e desdita de quem consigo se defrontasse.
A curta História de Benito
Vamos à história: Chamava-se Benito de Soto Aboal e, durante meses, de Gibraltar a Cádis, não se falou noutra coisa senão nos feitos atrozes deste pirata nascido em Pontevedra, na Galiza; e do «gang diabólico» sob as suas ordens.
Numa época em que as pilhagens no mar alto já tinham entrado em decadência, Benito de Soto teve uma carreira de pirata fulgurante. Durou menos de 2 anos mas, o suficiente, para deixar indelevelmente a sua marca.
O seu nome entraria então e em definitivo para a História da Pirataria depois do assalto ao navio britânico «Morning Star», em 1828, século XIX portanto.
Benito esteve 19 meses preso em Gibraltar, aquele estranho mas mui geográfico rochedo que medeia ou separa África da Europa e que, ainda hoje, se mantém num enclave geo-político de grande controvérsia entre Espanha e o Reino Unido. Mas isso são outras histórias...
E destes longos 19 meses de intensa investigação e compilação de um grosso processo contra Benito, efectuadas estas pela Coroa Britânica, levariam a que este fosse julgado e sentenciado à morte por enforcamento. Algo que foi exemplarmente cumprido no mês de Janeiro do ano de 1830 (tendo Benito somente 25 anos de idade) sem apelo nem agravo por nenhuma comutação de pena lhe ter sido aplicada. Não se perdoava o crime de pirataria nem podia! Muito menos a Benito, por tudo o que de mau causou.
Os Tesouros: quase sempre o ouro, as moedas cunhadas em timbre dos reinos ibéricos e, outros, na exuberância e saque sem contemplações de espécie alguma. Eram outros tempos, outras as fidalguias mas que, actualmente, talvez não sejam tão equidistantes assim para se vincular que tudo mudou, ou não fossem os piratas outros, de outras línguas e outras nações por iguais mares de outrora...
De Buenos Aires até à Forca...
Benito de Soto era já um marinheiro experiente, quando, por meados de 1827(somente três anos antes da sua morte, na forca), embarcou em Buenos Aires num navio negreiro que tinha por destino a costa ocidental africana.
A ideia do brasileiro - Pedro Mariz de Sousa Sarmento - capitão do navio «Defensor de Pedro» era ir raptar escravos a paragens não autorizadas e, a tripulação contratada para o efeito, reflectia o carácter da viagem. Juntava Franceses, Espanhóis e Portugueses, quase todos fugidos à justiça numa panóplia deveras interessante de homens fora-da-lei.
Sabe-se hoje que a ideia surgiu espontaneamente do Imediato do navio. Com Sarmento em terras africanas na busca de escravos, propõe então a Soto tomarem o navio de assalto e, dedicarem-se à pirataria. O Galego obviamente sequioso disso, aceita de prontidão a proposta, convencendo de seguida a maior parte da tripulação.
Quem não está pelos ajustes, ou seja, quem não está com eles nesta missão-pirata - num total de 18 homens - é deixado sem clemência à deriva, num simples bote a remos. Inevitavelmente em mar-alto, acabam por morrer todos afogados, levados pelo forte vento que se levanta e os afasta cada vez mais da costa. Soto, no entanto, tem outra tarefa urgente pela frente: Assegurar o comando do navio!
Nessa noite, aproveita o sono embriagado do seu rival - o Imediato - para o matar com um tiro de pistola à queima-roupa. Nos meses seguintes, sob o comando de Benito de Soto, o navio «Defensor de Pedro» é responsável pelo saque e destruição de vários outros navios. Entre eles, o britânico «Morning Star». Má fortuna o ter encontrado, regista-se. Seria este ataque a perdição dos piratas, mas naquele dia 21 de Fevereiro de 1828, por alturas da ilha Ascensão, quando Soto avista uma vela, a única coisa em que pensa é nas riquezas que o navio poderá esconder.
Quando a ambição de um homem não tem medida nem dimensão e muito menos aferição ou maior consciência que o dite para parar, o destino acaba por fazê-lo. Aos 25 anos de idade essa ambição foi-lhe coarctada de vez; Benito de Soto morreu na forca, no que momentos antes de lhe ser aplicada tão rigorosa pena, ainda teve tempo para dizer: «Adios todos», como se fosse apenas uma outra viagem ainda que sem regresso...
O que rezam as Crónicas...
O Morning Star partira de Ceilão carregado de café, canela, pimenta, ébano, soldados e passageiros, entre os quais algumas mulheres. E rumava a Inglaterra sem uma única arma a bordo; algo de muito negligente sem dúvida, para quem tanto tinha a se confrontar tanto em insólita paragem como em pirataria já verificada, mas enfim. Essa negligência saiu-lhe cara. Pesada demais.
Bastou um simples tiro para que desde logo os ingleses se rendessem. O primeiro acto de Benito de Soto foi matar o comandante inglês. A partir daqui é possível imaginar o que se seguiu: Pilhagem, humilhação e saque de bens e pessoas, em vidas e almas a seus pés, literalmente!
Os homens foram fechados nos porões. Quanto às mulheres, o destino era quase sempre o mesmo num tipificado padrão de violência e intimidação constantes: Violação e encarceramento, após o serem igualmente amarradas sem piedade alguma e, muitas delas, as mais revoltosas, mortas logo ali, em vazamento de vida ou sem qualquer outra benemerência que não fosse a escravatura sexual se acaso vivessem depois disso, tais os actos impuros a que eram submetidas na maior parte das vezes.
O Suplício era infindável! Sabe-se que os piratas do «Defensor de Pedro» abriram rombos no casco do Morning Star, o navio saqueado e abandonado agora no local do crime com, a certeza porém, de que o navio se afundava.
As Mulheres, no entanto, conseguiram libertar-se e soltar os homens. Desta vez, o fim não seria igual a tantas outras embarcações de alvo fácil para de Soto, para quem a vida pouco ou nada contava. Assim, os náufragos acabam por ser recolhidos, como por milagre, por um outro navio que cruza a sua rota no dia seguinte.
Benito de Soto e os seus homens rumam então e em primeiro à Galiza, depois a Cádis, para vender o produto do saque, sem sequer suspeitarem que os seus intentos entretanto foram descobertos. Mas mais há: O destino ser-lhes-ia fatal por obra e mão divinas ou sabe-se lá de quem ou porquê, o «Defensor de Pedro» encalha à entrada do porto desta cidade espanhola, apesar de se salvarem ainda os piratas em última bênção celestial que não duraria muito.
Com falsos documentos, Soto quase consegue ganhar algum dinheiro com a venda dos salvados do seu próprio navio, mostrando-se habilmente esperto mas pouco racional para o que aí viria em seu encalço. Depois, passados alguns dias, avolumam-se as suspeitas sobre a proveniência da mercadoria, fazendo então Soto fugir para Gibraltar. Má opção, dizemos nós, agora.
Mas a sua bem-aventurança ou desventurança marítima de violência e morte haveriam que se quedar, algum dia. Esse dia estava próximo; só Soto o não sabia. Os seus homens, na sua maioria, são levados presos e igual destino pende sobre as suas cabeças ou mais exactamente, pescoços. De igual sorte ao de Soto, foram julgados, executados, depois desmembrados, e o seus restos mortais ficaram pendurados em público, dias e dias a fio, servindo de fúnebre aviso e, exemplo, a todos os piratas.
De Benito de Soto apenas há a referir do que rezam as crónicas à época que, a sua figura era assaz imponente! Tinha uma juba de leão preta, ou seja, exibia um farto cabelo preto que usava comprido e encaracolado, tal Sansão indestrutível. Sabia-se gostar de forma envaidecida o vestir ou enfarpelar de meias brancas de seda, calças brancas e jaqueta azul ao melhor estilo britânico. Traumas de infância de uma vida pobre ou simples ódio/ostentação do que não possuía de berço mas invejaria certamente aos britânicos (entre outros), é algo que não se sabe mas apenas se especula.
Tendo sido reconhecido por alguns marinheiros sobreviventes do «Morning Star», Benito de Soto teve os seus dias contados; um a um, a partir daí. Foi preso, julgado e enforcado na praça pública. As suas últimas palavras foram: «Adios Todos».
Um navio moderno ou em contemporânea desventura, encalhado na praia. Ontem e hoje, a idêntica realidade absurda dos despojos de quem se vê morrer lentamente, sob a espuma do mar e a visão quase fantasmagórica de quem já foi grande, já percorreu mares e oceanos, e tantas histórias tem em si para contar; se o deixarem, ainda...
«Tudo o que me podia servir de refúgio era uma árvore grossa e rumosa, semelhante a um abeto, mas espinhosa, que se elevava ali perto, e decidi passar lá a noite, e ver no dia seguinte de que morte havia de morrer, pois não via hipótese de vida.»
- Robinson Crusoé, Daniel Defoe -
«Lost» ou seja, Perdidos...
Em versão portuguesa, Lost, quer dizer Perdidos, de facto. E tantos que se perderam e não voltaram por outros que vieram, um dia, ainda que não esperados ou consagrados nessa tão abençoada vitória do retorno e, da alcofa vazia, que antes eles enchiam - e aqueciam - e agora outros por lá se compraziam...
Algures numa ilha deserta: Em 1815 mais coisa menos coisa, eram vulgarmente publicadas em Paris (França) entre outros pontos referenciais europeus de grande estima de navegação e princípios marítimos, histórias várias de náufragos para amantes de aventuras marítimas também.
Verdadeiras umas outras nem tanto, para gáudio e especulação de quem se entretinha a maldizer dos que se iam e não voltavam, por outros que se abeiravam depois passados largos anos, o gentio populista e demagógico como hoje se apelidam os que muito falam e nada fazem, deram prazer mas também algum desconforto a quem se via confrontado com essas aparições inesperadas de amores passados, maridos enterrados (ainda que em alma que não em corpos...).
E tudo rumorejava num ror de desenterrados e mortos-vivos que ninguém queria acolher ou, ajustar, dos desajustados enjeitados ou pobres desgraçados de casa e alcofa não-suas.
Foi o que sucedeu com o conhecimento depois de um naufrágio revertido num patacho português, corria o ano de 1668 (livres nós, portugueses, do burgo reinante dos Filipinos Espanhóis, por avença da Restauração de Portugal a partir de 1 De Dezembro de 1640, em Rei português, nascido e criado de entre portas) e, lá longe, enterrado num banco de areia no mar filipino, as muitas peripécias vividas pelos seus náufragos de navio morto na praia, a bem dizer.
Com uma tripulação de 60 almas, entre mouros, gentios e portugueses, tudo gente de boa cepa e raça, ao que se consta, a embarcação largara de uma ilha das Filipinas, onde tinha ido fazer comércio - rumo à costa do Coromandel.
Não longe do ponto de partida, no entanto, terá encalhado num banco de areia, desfazendo-se rapidamente. A maior parte dos homens - gentios e mouros - apoderou-se da chalupa, mas acabou por se perder, afogada, levada pelo vento e pelas correntes. Quanto aos restantes, reza esta história, que conseguiram nadar duas milhas agarrados a uma caixa de madeira, até alcançarem uma ilha. E depois outra ainda.
O que hoje é a beleza natural em contemplação da vida aquática e marinha dos nossos mares, foi em tempos a alimentação, a sobrevivência nata de quem só queria manter-se vivo e voltar às origens; apenas isso. O tempo dá-lhes razão, ainda que muitos destes animais tenham dado a vida por eles...
Os Limitados Recursos...
Deserta, sem água nem árvores, como a primeira ilha, segundo os enfáticos relatos dos marinheiros; mas ainda assim com outros recursos: Durante 6 meses viveram das tartarugas que ali punham ovos, e nos 6 meses seguintes, dos bandos de «pássaros-bobos» que também ali nidificavam. Secavam a carne dos animais ao Sol, viviam em buracos escavados na areia, vestiam-se com as peles dos pássaros que comiam e aproveitavam tudo o que o mar lhes trazia. Sobretudo destroços de ouros navios tão pouco afortunados como o deles.
Quanto à água potável, sabe-se terem arranjado uma forma engenhosa de tirar o sal à água do mar, embora, neste ponto, o autor não nos dê grandes explicações, o que se lamenta, pois seria estrondoso verificar a forma magnânime como estes homens tiveram a lucidez e a esperteza (com alguma artimanha e certa inteligência, convenhamos) de se fazerem sobreviver.
Passaram-se seis longos anos e, algumas doenças então sentidas pelos infelizes marinheiros, levaram alguns deles. No princípio do sétimo ano de infortúnio, 16 náufragos viviam ainda, não sem alguma esperança de algum dia voltarem ao lugar que os viu nascer ou viver. Mas, as tartarugas e os pássaros começaram a escassear, malgrado o mau pronúncio também do que aí viria...
Decidem então, em último recurso - ou reduto - construir uma espécie de jangada para tentar chegar a terras mais brandas. Uma semana de navegação foi quanto bastou para chegarem à ilha de Hainan, na costa da China, pondo em fuga as gentes (apavoradas perante aqueles estranhos seres cabeludos e vestidos de pássaro).
Ao cabo de alguns dias, todavia, conseguiram fazer-se entender (se não por gestos, por intenções eloquentes, acredita-se!), sendo que o Mandarim local prestou-lhes socorro e transporte para Macau. Louva-se tal nobre gesto.
O actor Javier Bordem (ou capitão Salazar) numa das suas mais admiráveis performances cineastas do filme «Os Piratas das Caraíbas» em última versão e saga de entretenimento inglesas de: «Dead Men Tell No Tales». Ou, a vingança de Salazar de, na versão portuguesa: «Homens Mortos não Contam Histórias». Talvez... Mas os vivos sim, muitas. E que ainda hoje perduram como a maresia que nos entra na pele e nos ressoa no coração de outras histórias que mortos e vivos deixaram por contar...
Lenda ou facto real...?
Reza ainda esta história que não é lenda mas facto real do que então aconteceu, de que, um dos náufragos foi encontrar a mulher já casada com outro. E ter-lhe-à perdoado. Se foi o começo de uma boa amizade, uma ménage-à-trois muito à frente para a época ou, simplesmente, um livrar de culpas ou pecados em expiação do que houvera este homem passado, o certo é que tudo ficou bem e acabou em final feliz. E isto, sem se saberem mais pormenores sobre este ou outros iguais casos de alcofa cheia, alcofa presente por maridos ausentes, mortos, desaparecidos - ou entretanto esquecidos - é algo que nem sempre a História nos conta...
Mais haverá, admite-se, mas aqui não se contará; pelo menos por hoje que o Sol já vai alto a a Lua se emparelha como união afecta e não junta, tal como a separação destes homens do mar de seus afectos, de suas mulheres e seus filhos, pais e mães ou restante parentesco, deixados todos em terra, todos em silêncio ou em franca agonia libertada de uivos e unguentos, noutros suplícios ou noutros cilícios, penitentes ou não, quem o saberá?
E que mar é esse, esse devoluto mar que tudo empenhou e a memória não levou...? Assim se julga, assim se comenta. E assim a descendência representa, nos feitos e glórias de outros tempos, outras Memórias do Mar. Cabe-nos a nós, agora, escrevê-lo e pensá-lo - ou de nada valeram as vidas e as mortes memoráveis umas, ou inenarráveis outras, mas todas, acredita-se, poderosas e mui prenhes de esperança e continuação. Assim seja, Ó Mar!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário